Estes dias pus-me a remexer um baú antigo de fotografias que tenho aqui em casa. Esta arqueologia particular e pouco técnica sempre nos preenche com um misto de saudade e de surpresas. De repente, descobrimos que muitos entes queridos simplesmente, um dia, encantaram-se. Figuras estimadas, muitas imprescindíveis na nossa jornada, um dia, misteriosamente, passaram a morar no álbum de retratos. A gente, também, se dá conta que o rapazinho lépido e sonhador da fotinha, dismilinguiu-se um pouco, esmaeceu e não mudou só o envoltório, teias de aranha e carunchos não ficaram só na superfície, penetraram pelos fios da alma e corroeram, um tanto, a aquarela dos seus anseios e esperanças. Pois bem, em meio a estas constatações sempre renovadas a cada página dos álbuns de fotografias, dei com uma foto que de há muito tinha por perdida. Tinha me sido oferecida, nos anos 80, pelo jornalista e amigo, o soberbo comunicador Antonio Vicelmo.
O retrato em preto e branco, daqueles que não se deterioram com a passagem dos anos, mostra um senhor sessentão, de cabelos grisalhos e pouco penteados, nariz proeminente saltando do rosto meio a perfil, com profundas rugas desenhando aquela face marcadamente nordestina. Uma barba e bigodes ralos e prateados encobrem o queixo e o lábio superior. No peito a camisa aberta no seu largo, deixa sobressair um peito cabeludo com tons que combinavam com o gris do cabelo e da barba. O olhar, de revés, transparecia preocupação e profundidade. Percebi, com alegre surpresa, imediatamente o achado, quase como Carter diante da múmia de Tutancâmon.
Tratava-se de Vicente Finim, uma das mais mitológicas figuras do Cariri. Nascido e vivente no Sítio Cabeceiras em Barbalha, Vicente trazia na geografia razões mais que premonitórias para o mítico e encantatório. As Cabeceiras fez-se morada de D. Bárbara e dos Penitentes da Cruz. O sobrenome de Vicente veio, segundo familiares, da figura franzina e esquálida que virou Fino e, depois, carinhosamente despencou para o diminutivo Finim. Os mais novos não lembram, mas Vicente era famosíssimo no Cariri, em noites de lua cheia, dizia-se a boca miúda, ele virava lobo e saía perambulando pelas estradas e sítios procurando animais para comer.
Difícil determinar a origem do mito do Lobisomem. Estas lendas ancestrais devem ter chegado aqui com nossos colonizadores. Quase todas as civilizações antigas alimentavam lendas de homens que se transmutavam de animais, em geral para explicar reações violentas e selvagens. Como se naquele momento do crime, não fossem eles que o estivessem perpetrando. Geralmente o início destas transmutações aparecem por uma maldição. Ninguém sabe informar, ao certo, de onde veio a fama de Lobisomem do nosso personagem. Os meninos temiam-no, os sertanejos o olhavam com um ser ressaibo e respeito. E Vicente terminou gostando da brincadeira, a fama lhe trouxe mais benefícios que chateações. Até alimentava o mito, contando detalhes das suas peripécias quando se sentia atuado e na nova vestimenta selvagem. Segundo ele, aquilo tinha sido um castigo, uma praga rogada por sua mãe.
Eram felizes aqueles tempos escondidos em meio aos álbuns de retratos. Até os monstros apareciam periodicamente, nas sextas feiras e noites de luz cheia. A gente escondia-se nestes dias de maior perigo e estava salvo. Hoje os lobisomens formaram uma alcateia: atacam nos boletos de final do mês, espraiam-se pelo ar e armam emboscada em cada esquina e rodinha de conversa, confinam-nos em casa roxos de medo e angústia. E o Lobo Alfa nem tira a vestimenta, recusa-se a virar humano durante o dia, como seus antecessores, usa paletó, sobe rampa, agride criancinhas, cospe impropérios e ataca por ameaças, decretos e por leis. E, em voracidade, faz inveja aos chacais. Saudade de Vicente Finim!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
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