Os metais, para tomarem forma de artefatos e de jóias, necessitam ser forjados sob o calor altíssimo da fundição e, depois, moldados , pacientemente, a seguidos golpes de malho. A pérola é um mero resultado de uma crônica inflamação da ostra, uma reação de corpo estranho. Talvez esse mesmo processo explique a resiliência e a força do nordestino. Submetido ao forno climático, surrado pelas intempéries das secas periódicas, martelado pelo descaso das políticas de governo; qualquer adversidade, para nós, é tiquim. Aprendemos a saltar de banda, as artes do negaceio e os pulos de gato. Descobrimos, nas irregularidades das estações, na polarização entre Verão-Inferno, que a vida também tem suas ciclicidades. Nada é definitivo e peremptório, a tristeza de hoje já traz consigo o gérmen fecundado da alegria de amanhã. Difícil, assim, pegar o nordestino no contrapé, cabisbaixo ou desiludido. A esperança nutre-nos e, por isso mesmo, o matuto olha para o céu, menos em feitio de prece e de súplica, e muito mais na expectativa da mudança dos ciclos vitais.
E como conseguem ser felizes e realizados com os pequenos triunfos e as mínimas vitórias! Como sabem partilhar com os familiares e amigos as pequenas posses, os milagres da terra e a fartura dos paióis! O nordestino, sabiamente, nunca coloca o ninho do sonho numa altura da árvore que não possa alcançar. Alça-se a ventura sempre ao alcance da mão. E são muito bem humorados, sabem rir das suas desgraças e seus azares que sabem são pedras postas em meio ao caminho para arrancar o chamboque do dedão, mas, também, para impulsioná-los para frente. Vistos de longe parecem ignorantes, tolos e manipuláveis, mas basta uma simples aproximação para se perceber que são sábios e cientistas naquele segmento do planeta que escolheram por viver e explorar. Como disse Mia Couto: ali, naquele mundo particular, eles são doutores e PHDs e os analfabetos somos nós.
Às vezes, pomo-nos a estranhar a opção de eles viverem nos grotões, isolados, sem os muitos recursos e os adornos proporcionados pela pretensa modernidade. Mas na cidade grande, o isolamento não é menor. Somos solitários na multidão. A metrópole tem milhões de habitantes, mas com quantos cada um de nós convive? Quantos amigos juntamos? Muitas vezes nosso planeta se restringe a colegas de trabalho e a um apartamento de 60 m². Caindo nas moendas da sociedade de consumo, toda a existência se resume em trabalhar para pagar boleto.
Meu avô Vicente Vieira viveu quase toda a existência na Lagoa dos Órfãos em Várzea Alegre. Quase de lá não saía. Nos anos 50, um dos filhos, Raimundo, formou-se em Medicina em Salvador e ele, ressabiado e desconfiado, foi à cidade grande para festa. Ficou hospedado no quartinho da República, na Rua Chile. O tio convenceu-o a aproveitar a ida e fazer uma consulta. O velho Vicente não sabia o que era consultório. Procuraram o Dr. Fernando Filgueiras, um dos mais renomados esculápios da Bahia. O médico gostou do cliente desenrolado e senhor de uma outra realidade e puxou conversa.
— Tá gostando de Salvador, seu Vicente ?
— Aqui é bom, mas é esquisito. Vocês são como jumento de lote?
— Como assim, seu Vicente?
— Vocês só cagam num canto só, numa tal de sintina!
— E onde o senhor mora é diferente?
— Oxe! É muito melhor! O banheiro é o mundo todo, Dr. Fernando! Cada dia a gente escolhe um lugar diferente! O senhor não sabe o que é fazer as necessidades, acocorado, debaixo de um pé de pião roxo, com um turunga no bico e um sabugo na mão!
— Sabugo, seu Vicente? Um sabugo de milho, é? Pra quê , homem de Deus?
— Dr. Fernando, e o senhor, um doutor formado, não sabe disso não? É nosso papel higiênico , só que muito melhor!
— Melhor, seu Vicente? Um sabugo, por quê?
— Ora, o sabugo tem três qualidade ‘quesses’ papel véi daqui num tem!
— Que qualidades são essas, seu Vicente?
O velho Vicente, então, mostrou o seu diploma de Doutor Honoris Causa do sertão nordestino:
— Ora, seu doutor! O Sabugo limpa, coça e penteia!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri