Na administração pública, há três tipos de gestores: os que fazem, os que mandam fazer e o general Eduardo Pazuello, que passa a impressão de estar sempre perguntando a si mesmo o que foi que aconteceu. Guiando-se pela aversão de Jair Bolsonaro à ciência, o ministro da Saúde se absteve de antecipar a compra de vacinas na quantidade necessária. Agora, por ordem do presidente, corre para evitar que estados e municípios comprem as vacinas que a União negligenciou.
Em conversa com a coluna, um executivo da pasta da Saúde informou que Bolsonaro foi taxativo na orientação que deu a Pazuello. Não admite que consórcio de prefeitos ou aliança de governadores substituam o governo federal na negociação com os fabricantes de vacinas. Até porque fariam “gentileza com chapéu alheio”, diz Bolsonaro em privado. “Eles compram, mas quem paga sou eu”, acrescenta, como se o Tesouro Nacional fosse o seu bolso.
Alheio ao colapso que a Covid-19 produz em UTIs e enfermarias de todo país, Bolsonaro enxerga “motivação política” na corrida à vacina. Irritou-se com as cartas divulgadas por governadores e prefeitos, criticando-o. Foi movido por esse aborrecimento que reagiu com um insulto à cobrança para que o governo compre mais vacinas: “Só se for na casa da tua mãe! Não tem para vender no mundo.”
A portas fechadas, Bolsonaro soa ainda mais insultuoso. Saiu do sério ao ser informado que um governador já havia contatado o laboratório americano Pfizer, que tenta vender 70 milhões de doses de vacinas ao governo federal desde setembro. O presidente reagiu com o palavrão frequentemente utilizado para enviar desafetos à presença da senhora que, exercendo a profissão de prostituta, o que torna impossível saber com precisão quem é seu pai, lhe deu à luz.
Nos últimos dias, acossados pelos governadores, Pazuello e sua equipe passaram a negociar a sério contratos com laboratórios como Pfizer, Johnson & Johnson e Moderna. Mas não há, por ora, senão compromissos de gogó. No mundo real, o cronograma de vacinação da pasta da Saúde sofre um inusitado processo de encolhimento.
Tido como um ás da logística, Pazuello prometera entregar 46 milhões de doses neste mês de março. Na última quinta-feira, a previsão caiu para 38 milhões. Na sexta, deslizou para 37,4 milhões. Alegou-se que o Butantan, fornecedor da CoronaVac, entregará menos doses do que prometera. Neste sábado, em novo tombo, estimou-se que haverá apenas 30 milhões de doses.
O governo retirou do seu pastel de vacinas o vento representado por quase 8 milhões de doses da Covaxin, do laboratório indiano Bharat Biotech, que ainda não publicou estudos sobre a eficácia do produto. Tampouco requereu registro na Anvisa.
Num cenário crivado de ineditismos, em que o governo realiza um Programa Nacional de Vacinação sem vacinas, não se deve descartar a hipótese de novos recuos no cronograma oficial. A conta do Ministério da Saúde para março ainda não foi imunizada contra o vírus da dúvida.
Há na lista do governo, por exemplo, 3,8 milhões de doses da vacina de Oxford/AstraZeneca a serem produzidos pela Fiocruz. A matéria-prima importada da China ainda não recebeu o aval da Anvisa. Há também um lote de 2,9 milhões de doses da vacina de Oxford que será fornecido pelo Covax Facility. Trata-se de um consórcio da Organização Mundial da Saúde, que ainda não informou quando enviará o carregamento para o Brasil.
O Pazuello que corre atrás de vacinas torna-se um personagem irreconhecível quando comparado com o Pazuello de três meses atrás. Em dezembro, questionado por João Doria numa reunião por videoconferência sobre o real interesse do governo em adquirir as vacinas que o Butantan trouxe da China, o general condicionou a compra à existência de demanda.
“O Butantan, quando concluir o seu trabalho e estiver com a vacina registrada, nós avaliaremos a demanda”, disse Pazuello na época. “Se houver demanda e houver preço, nós vamos comprar.” Dias depois, ainda em dezembro, o general discursou no Planalto, numa solenidade de lançamento do plano de vacinação.
Pazuello soou assim: “O povo brasileiro tem capacidade de ter o maior sistema único de saúde do mundo, de ter o maior programa nacional de imunização do mundo, somos os maiores fabricantes de vacinas da América Latina. Para que essa ansiedade, essa angústia?”
A resposta à indagação do Pazuello de dezembro está no rebuliço do Pazuello atual. O general descobre que não há infortúnio maior do que esperar o infortúnio. Numa pandemia, o braço cruzado também mata.
Josias de Souza é jornalista desde 1984. Nasceu na cidade de São Paulo, em 1961. Trabalhou por 25 anos na “Folha de S.Paulo” (repórter, diretor da Sucursal de Brasília, Secretário de Redação e articulista). É coautor do livro “A História Real” (Editora Ática, 1994), que revela bastidores da elaboração do Plano Real e da primeira eleição de Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República. Em 2011, ganhou o Prêmio Esso de Jornalismo (Regional Sudeste) com a série de reportagens batizada de “Os Papéis Secretos do Exército”.
Publicado originalmente no UOL