As filhas, cuidadosamente, levaram o velho Fulgêncio, numa cadeira de rodas, até a calçada alta da casa. É pra ele espairecer um pouco, pensou Cleonilda, a mais velha e que ficara para titia e, de quebra, para principal cuidadora do pai. Havia uma razão especial para aquele bônus oferecido à eterna clausura de Fulgêncio. A casa antiga, de cumeeira empertigada como coqueiro, ficava estrategicamente colocada na pracinha central de Matozinho, defronte à Igreja de N. S. dos Desafogados. Naquela semana estava acontecendo a Novena da Santa, aquele era o período mais festivo da vila. Missas, quermesses, leilões, barraquinhas com comidas típicas e também com a tradicional Mendraca do Coronel Anfrízio. A aguardente era tão forte que se tinha a sensação, ao entronar o copo, que se estava engolindo um gato, o bicho escorregando goela abaixo, com as unhas abertas, cravadas, e estrebuchando, querendo voltar ladeira acima. Havia, também, o parquinho das crianças com suas canoas movidas em pêndulo a força de muque, seus carroceis de várias velocidades, os jogos de azar, os estandes de tiro ao alvo. Todo noite, após a novena, era aquele alarido de fogos e bombas em homenagem à milagrosa mãe de Matozinho. E foi por isso mesmo que naquele dia o velho ganhou uma carta de alforria, claro que com liberdade condicional.
Fulgêncio, com olhar um pouco vago, pôs-se a contemplar a pracinha apinhada de gente que, há pouco, atacara os baús e dali arrancara as suas melhores roupas, guardadas sempre para ocasiões muitos especiais. Roupa de Novena, como se dizia em Matozinho. O olhar meio tardo percorreu a pracinha em cento e oitenta graus, detendo-se num ou noutro detalhes. Por fim, Fulgêncio deu com o Pau de Sebo que estava fincado no meio do logradouro. Era um jatobá bem alto, de uns trinta metros e que começava quase como um mourão mas se ia afinando à medida que se distanciava do chão. Estava todo recém besuntado com sebo de carneiro e, no topo, fitas coloridas e uma nota de cem reais oferecendo-se ao alpinista intrépido que a alcançasse.
Num átimo, as lembranças do velho Fulgêncio afloraram como se mãos fortes espremessem um carnegão. Vieram-lhe à mente, muitas outras Festas de Padroeira. Nascido pobre, sua vida tinha sido um verdadeiro rali. Alternara-se em incontáveis profissões em muitas cidades. Só em São Paulo labutara por mais de dez anos como servente de pedreiro. Virou o estado como mascate vendendo quinquilharias até se fixar em Matozinho com uma lojinha de confecções. Criou os cinco filhos , como se participasse de uma gincana: cada dia precisava matar o leão e, às vezes, o dragão, os dinossauros e os fantasmas. As coisas melhoraram quando caiu na idade, mas aí a esposa foi acertar as contas celestiais e o derrame o pegou pelo pé e o lançou na cadeira de rodas tirando-lhe toda a autonomia. As filhas eram zelosas, mas ele se sentia um traste. Nem para me matar presto mais, pensava nos momentos mais tormentosos.
E ali estava ele, assistindo às peripécias dos atletas no pau de sebo. Subiam dois metros, voltavam ao chão. Às vezes próximo de chegar ao topo, justo na parte mais delgada do jatobá, slipe! Todo o trabalho estava perdido e se voltava à estaca zero. Periodicamente, funcionários untavam o pau, numa nova demão. Já de tardezinha, um rapazinho franzino de Bertioga, com cara de abestado, utilizou uma técnica que não era conhecida. Furou os dois bolsos da calça e os encheu de areia. Começou a escalada e, à medida que ia subindo, a areia escorria pelos feriados dos bolsos e lhe caiam sobre os pés, ajudando a aumentar o atrito ao se misturar com o sebo. E foi assim que, finalmente, Bertolino, para os apupos furiosos da galera, arrancou, do cimo, a nota de cem reais, sonho perseguido, sem sucesso, por tantos.
Da sua cadeira, Fulgêncio observou tudo atentamente. A vida, concluiu com as rodas do automóvel que lhe restou, era também um pau de sebo. Um subir e descer constante, escorrega daqui, cai dali, sempre pensando em pegar o tesouro que a gente vê lá no alto. Alguns desistem no meio, outros se acidentam na tentativa. Diferentemente do Pau de Sebo da Novena de Matozinho, mesmo aqueles que usam a areia da persistência e chegam nos píncaros descobrem que, na vida, a nota de cem reais é sempre falsa.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
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