O texto sagrado dos cristãos nos conta que O filho de Deus passou quarenta dias no deserto e sofreu toda ordem de tentações. Após aqueles dias difíceis de reflexão Ele retornou à cidade para cumprir aquilo que estava determinado para Ele. O retorno retratado na bíblia fala do domingo de ramos, do lava pés, numa sequência dos dias que antecederam de imediato o sacrifício de jesus. Em Lucas 22, 53, há a referência à quarta-feira de trevas, a escuridão metafórica da noite em que fora preso. Em Mateus, 26, versículos 26-30 a referência à Quinta-feira que foi o dia em que se realizou a última ceia de Jesus com seus amigos e na sexta-feira da paixão, o dia em que o Ravi foi crucificado, não sem antes sofrer todo tipo de humilhações, e tudo isso, de acordo com a tradição para remir os pecados do mundo.
Desde criança que ouço essa história, e sempre fiz minhas reflexões à cerca da simbologia da semana santa para os cristãos, especialmente os católicos, já que sou de uma família católica. Nessas reflexões não via sentido entre o que Jesus tinha passado e o espírito que pairava sobre o povo. Para mim, criança, era um período de muita felicidade que ia desde a ociosidade dos dias sem aula até a fartura das mesas nos almoços em família.
É que a nossa compreensão de cabinha só alcançava as coisas agradáveis. Na quarta-feira de trevas não tomávamos banho, e mesmo que passássemos a manhã e a tarde em brincadeiras, normalmente o futebol no campinho do Barreirão, à tardinha só nos saciávamos, uma espécie de assepsia paliativa. Na quinta-feira seguíamos nosso ritual de cabinhas soltos nas brincadeiras. Se as caçadas de baladeira eram proibidas, íamos ao Cafundó em pescarias nem sempre promissoras, mas sempre satisfatórias pelos banhos de rio, críamos em que as águas naqueles dias estavam bentas, e não adoeceríamos. embora proibidos, não havia punição porque os pais não podiam bater nos filhos na semana santa. À mesa no almoço e na janta, já se via um gradativo aumento da fartura, arroz, feijão verde, peixe assado, bacalhau, saladas, bolinhos de macaxeira, tudo muito bom. E nos deliciávamos como se fosse a nossa última ceia, embora sabendo que na sexta seria ainda mais especial.
A sexta-feira éramos obrigados a jejuar, o que não nos era muito agradável, aquele ócio escolar, dedicado às brincadeiras implicava gasto de energia o que não combina com jejum. Então, para nós não havia pecado em comer escondido uma fruta, um pedaço de bolo, uma espiga de milho cozida no intervalo do café da manhã e o almoço. Foi numa destas ocasiões de jejum imposto arbitrariamente pelas mães que aprendi uma lição comovente. “Marcos, que chamávamos Bainha, num ato de ousadia, pegou na frente de sua mãe um pedaço de coco e começou a comer. Ao que sua mãe o repreendeu que era pecado, já que deveria jejuar. Marcos que naquele tempo contava já uns 17 anos, emendou: ‘a gente já jejua o ano todo, quando tem fartura tem que jejuar mais?’ e deu o xeque-mate ; ‘pecado é não comer com tanta comida boa’, trago até hoje essa lição. Eram tempos difíceis aqueles”. Ele tinha razão, pecado mesmo era ficar com fome diante de tanta opção. Na hora do almoço, aquela mesa sortida não lembrava nem um pouco que jesus seria crucificado.
No sábado, íamos à noite à missa de aleluia, afinal o Cristo haveria de ressuscitar. Para a turma era um barato ficar até muito tarde na Praça da Sé à espera do toque dos sinos anunciando que o Cristo estava vivo. No domingo de páscoa, pelas ruas da cidade os caretas, meninos e homens vestindo roupas velhas com máscaras de papelão faziam a festa e o terror da molecada. A alegria era tanta pela ressuscitação do Cristo que os caretas passavam o dia bebendo cachaça com o dinheiro que recebia das doações dos populares. No início da noite a atração era a explosão do Judas, lia-se o testamento, em versos de cordel, onde se homenageava algumas pessoas da comunidade com sátiras sobre o que o Judas lhes deixava, em seguida só se ouvia o estrondo, e os populares correndo para tentar apanhar algum que dinheiro que geralmente era colocado no boneco.
As semanas santas de antigamente eram muito melhores que as de hoje. Mas uma coisa ainda ocorre: pouco lembram a simbologia da paixão e sacrifício do Cristo. A diferença é que naqueles tempos quando éramos crianças, cabinhas soltos em brincadeiras, havia uma inocência, hoje as razões são outras.
Por Francinaldo Dias. Professor, cronista, flamenguista, contador de “causos” e poeta
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri