Família de classe média, no Brasil, não tarda em virar condomínio. Os filhos mais velhos começam a casar, geralmente por algum acidente de percurso no namoro, e, ainda sem recursos para voar com asas próprias, vão fazendo ninho na casa dos pais. De repente, espalham-se pela casa: filhas com esposos, filhos e mulheres, rebentos que se vão multiplicando em meio a tias, tios, avós. Essa realidade faz com que primos se tornem irmãos e sejam criados juntos num grande rebanho, no mesmo terreiro, dividindo a mesma feira, os mesmos brinquedos, a mesma cozinha e, às vezes, os mesmos quartos.
Essa história vem de uma dessas famílias de amigos nossos que, em Recife, precisaram compartilhar o mesmo apartamento com a filharada e a netarada. Eram mais de dez primos, em escadinha, imprensados num mesmo apartamento de três quartos minúsculos. Salvo as escaramuças esperáveis, a convivência entre eles tinha lá seus arranca-rabos mas não se transformara num Hamas X Israel. Havia uma única exceção. A meninada dividia-se entre cinco e dez aninhos, mas havia um dos primos mais taludo que, com cara pinicada de espinhas, já completara quinze. Chamava-se Robledo, nome que por si só já soava como uma ameaça, ema espécie de teje preso. E, montado no corcel arisco da adolescência, ele achava-se superior aos outros, uma espécie de general entre os samangos. No almoço, assumia o direito de pegar o pedaço maior da mistura, nos jogos roubava como um político e não se conformava em perder uma partida sequer e, o mais grave, detinha o controle da televisão e impedia a turma de escolher os programas preferidos que, claro, tinham lá suas especificidades para cada faixa etária. Brigas e discussões aconteciam frequentemente, mas o grandalhão, sojigava a todos com seu tope mais atlético e seus pesqueiros. Dia após dia a situação foi se tornando insuportável. A meninada mais nova esperou, o momento do fortão sair para a escola e, numa assembleia participativa, pôs em pauta o grave problema do autoritarismo do primo mais velho. Em comum acordo, depois de amplo debate, resolveram:
— Só há uma solução, temos que matar Robledo!
A partir daí armaram o plano. Quando ele chegasse de tardezinha e desse de garra do controle remoto, Severino, o Biu, de 09 anos, avançaria sobre ele, na tentativa de resgatar o instrumento, mas antes lançaria o grito de guerra: atacar! Aí Pedro viria com um cabo de vassoura, Cristino com um canivete, Alice com a trave da porta, Sabino com o facão rabo de galo, Honório atacaria com a baladeira, Lys com a frigideira, Hortêncio atiraria com seu bodoque, Lurdinha, Jaime e Naldo lançariam pedras no pé do ouvido de Robledo. Até ensaiaram o motim que redundaria, finalmente, na queda do ditador e na liberdade, ainda que tardia, da primarada.
À medida que se aproximava a hora provável do retorno do tirano, apesar do preparo psicológico e dos ensaios, notava-se um ar de medo e apreensão nos meninos, aquele mesmo que invadiu os soldados aliados, no Dia D. Pareciam manifestantes diante de Xandão. Quando, por fim, viram o trinco da porta se mexer, conforme ensaiado previamente, os primos se esconderam em diferentes lugares próximos à sala, com armas nas mãos. Todos a postos. Biu deitou-se, folgadamente no sofá, segurando o controle, e aguardou o momento de dar o bote. Robledo entrou e já partiu para cima, tomando o remoto:
— Decá isso aqui, seu mané. É meu!
Num salto de gato, Biu voou em cima dele, tomou o controle e, conforme combinado, deu o berro de guerra:
— Atacar!
Como não visse qualquer reação, repetiu umas três vezes, enquanto corria na sala, tendo um Robledo, de dentes trincados, no seu encalço.
— Atacar! Atacar! Atacar!
A operação de guerra parou no grito de Severino. Primeiro no de atacar, depois no de chorar com o tabefe fenomenal que levara de Robledo, antes de arrancar-lhe o artefato de sua mão. O exército amarelou e o grande plano ficou apenas no planejamento.
No futuro, Severino descobriria que a famosa operação Mata-Robledo havia sido apenas um pequeno experimento do que acontece, a todo instante, na vida real. A grande distância que separa a ideia genial de sua execução prática. Fiéis até tinham planos engenhosos de salvar Jesus da cruz; Tiradentes aguardou as forças rebeldes que o resgatariam da forca; Frei Caneca esperou os amigos revolucionários equatorianos que o salvariam do fuzilamento; Bolsonaro acredita que a boiada vai soltá-lo da prisão. No Brasil há sempre mais ideias geniais do que voluntários que as apliquem. Há gatos e chocalhos demais na praça. O problema é que ninguém sabe como amarrar no pescoço do bichano.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri