A história da vida privada e pública da sociedade brasileira inclui, de forma invariavelmente indiscreta, a mentira em todas as suas dimensões. A institucionalização da mentira no Brasil é irrevogável. A fundamentação da mentira como a nossa mais recorrente trapaça foi feita de forma natural, inerente, uma vez que os intermináveis moldes da mentira se ajustam perfeitamente à envergadura moral brasileira. Nesse caso, o pertencimento é uma questão de tempo ou de status, vai de acordo com a necessidade ou com o papel que se deve protagonizar na defesa da honra, da família e, principalmente de Deus, já que Pôncio Pilatos declinou com o filho Dele.
Com a fragmentação e a descontinuidade próprias da pós-modernidade a sociedade brasileira expandiu de forma complexa suas habilidades e competências na prática da mentira. A sociedade brasileira se tornou uma bruxa medieval ultra digital e transforma mentira em verdade e verdade em mentira com a facilidade de quem rouba o bem público. Daí a necessidade mais do que urgente em tombar a mentira como patrimônio material e imaterial de todos e todas, sem preconceitos ou distinções. Em tese não há nenhuma espécie de restrição quanto ao uso maléfico ou benéfico, se é que isso possa existir, da mentira nas rotinas desse povo varonil. Seja ela a mentira profissional, afetiva, banal, cabeluda, descarada, miliciana, palaciana, ou ruminante e de forma geral.
Apesar da desenvoltura sem nenhum constrangimento na convivência das especiarias mentirosas do povo brasileiro, o país deu uma balançada vertiginosa com a última aparição pública e internacional da mentira, na sua vertente oficial e representando a nação perante o crivo moral estrangeiro. Vale ressaltar que não foi uma mentira qualquer, a bem da verdade. A performática presidencial na ONU emplacou uma mentira histórica, digo uma ruma de mentira que entrou pela porta lateral do vulgo brasílis como a mais canalha de todas. Essa foi a estupefação: mentir de forma medieval diante da documentação virtual sobre queimadas, pandemia, ajuda social, a não fuga de capitais estrangeiros na economia, cristofobia e defesa do meio ambiente, entre outras mentiras menores, mas não menos deslavadas, desavergonhadas. A audácia do cinismo é acreditar que os outros acreditariam. É grotesco, mas não inusitado.
Já a vergonha é a imobilização plena do Supremo Tribunal Federal, do Congresso e da oposição, pois se trata da maior falta de decoro de todos os tempos na política tupiniquim, desde Cabral e sua frota invasora. É justamente essa atitude covarde e conivente que corrobora a herança atávica da mentira brasileira, de fato, o Brasil é uma grande mentira, não existe como instituição. A única legislação válida no país é a que rege o desfile das escolas de samba no carnaval do Rio de Janeiro. Justamente o estado da família Bolsonaro, de Eduardo Cunha, de Crivella, de Witzel, de Roberto Jefferson, de Cristiane Brasil, do pastor Everaldo, de Flordelis, de Moreira Franco, de Rodrigo Maia. Todos ligados ao presidente. Todos já condenados ou investigados por bandalheiras. Todos tentando a feitiçaria de transformar verdades em mentiras.
A realidade paralela da mentira é a mais refinada ração para o gado bolsonarista, transformado em um público infantilizado de circo de periferia, que se posta de quatro em uma hipnose coletiva, pronta para comer bosta de gente a um simples comando digital. O poder ilusionista dos algoritmos das fábricas de mentiras em série é capaz de muita coisa extraordinária nas redes sociais. Tem mesmo a proeza de manipular até o prazo de validade da verdade. Sob o efeito dessa magia bandida a grande imprensa faz seu papel de exterminador do presente. Receberam a condenação de inválidas várias verdades, inclusive a famigerada reunião ministerial em que Guedes coloca a granada no bolso do inimigo, Salles faz passar a boiada das queimadas e do desmonte das defesas ambientais e o então treponema da educação achincalhou o STF, desmoralizando o que já era sem moral.
Quando a imprensa canalha tratou 39 kg de cocaína em um dos aviões da comitiva do presidente como uma quase mentira e não divulgou até hoje que de acordo com dados levantados no Portal da Transparência, o sargento da Força Aérea Brasileira (FAB), Manoel Silva Rodrigues, apesar de estar detido e sem trabalhar desde junho de 2019, o militar recebe brutos R$ 8,1 mil mensais, incluindo verbas indenizatórias, ficou muito claro que é fácil se safar oficialmente. É por isso que a primeira dama está peitando judicialmente as verdades contra ela. Praticamente ela está ordenando que não se divulgue qualquer pergunta sobre os R$ 89 mil em cheques que o ex-assessor Fabrício Queiroz e a mulher dele, Márcia Aguiar, depositaram em sua conta bancária, pois essa é uma verdade em vias de se tornar mentira. Não é verdade, Supremo Tribunal Federal?
Por Marcos Leonel – Escritor e cidadão do mundo
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri