Val do Pai Mané rápido reconheceu que nunca na vida tinha passado uma pindaíba daquele tamanho. Parecia um daqueles castigos bíblicos como as pragas do Egito ou o fogaréu de Sodoma & Gomorra. Família de cinco filhos pequenos, todos de bico aberto esperando a comida, como filhotes ansiosos pela volta do urubu cangueiro ao ninho. Val tirava seu sustento aspergindo as cordas da viola e cantando suas loas mundo afora. O seu escritório era tão nômade como ele: bares, feiras, novenas, festinhas, sambas, aniversários, programas de rádio. Às vezes cantava sozinho e, mais frequentemente, arranjava outros cantadores para acompanhá-lo. Os desafios juntavam mais gente e criavam aquele clima de disputa, dividindo-se a plateia, rapidamente, em torcidas como se fora jogo de futebol. O ganho carregava a imprevisibilidade típica da profissão. Como monetizar o imponderável? Como precificar algo fluido e irrotulável como o verso e a poesia ? Terminada a refrega os contendores somavam o que havia sido depositado no bojo do chapéu jogado a um canto do terreiro. Dias mais auspiciosos, outros de secura em feitio de cuspe de papagaio.
“Essa é minha jornada
Do nada sigo pro nada
Como um bascui na enxurrada
No rio da precisão
Vivendo no pé da serra
A vida toda se encerra
Nos sete palmos de terra
Nos oito pés em quadrão”
Se os dias normais já carregavam consigo seus tons mais puxados para o cinza, os dois últimos anos, então, se tornaram uma via crucis para Val. Tempos de pandemia, de isolamento social. Os eventos públicos todos cancelados. Feiras, festividades, aglomerações, totalmente proibidas. Val ainda pôs a mão numa esmola do governo, dada a contragosto e de má vontade. Voltou para a roça, tentando arrancar da terra algum sustento para a família que dividia o cardápio entre o ovo e o osso. Ficava, à noite, matutando que pecados ele e os vizinhos tinham cometido para receber um castigo daquele tamanho. Perdera vários familiares com a peste. No Natal não conteve o choro quando viu o seu filho menorzinho pedir a Papai Noel, de presente, um prato de decumê com um tiquinho de carne pro riba.
Nos últimos meses, as coisas melhoraram um pouco. Diziam que a praga parece que tinha ido embora, finalmente. Mesmo assim, as coisas não voltaram ao normal. No rastro de mortes da reima ficaram também as consequências da liseira generalizada e do desemprego. Além de tudo, a carestia estava como há muito tempo não se via. O dinheiro era minguado e, além de tudo, comprava bem pouco. Val, por outro lado, não podia aumentar o preço da cantoria: em rima não cabe código de barras.
Esta semana, num bar do Pai Mané, alguns filósofos de balcão se mostraram otimistas. Ia aumentar a esmola do governo. O velho Pedro Cidrão, no entanto, do alto dos seus oitenta e lá vai pedrada, mostrou-se cético. Aquilo era ano de eleição e político é danado pra inventar moda. Querem comprar nosso voto. É tanto que vai ser só até dezembro! Não é mais esmola, não, meus amigos, agora é extorsão. Alguns mais otimistas discordaram, o presidente tinha acordado, agora reconhecia a importância dos pobres e estava se penitenciando. Foi neste instante que Val sacou da viola e definiu o pacote de bondades oferecido pelo satanás.
“SÓ QUEM CRÊ QUE ESSA TERRA É QUADRADA
QUE UMA PATA PARIU UM BOI ZEBU
E QUE O PAPA CASOU, SÓ ANDA NU
SÓ QUEM TROCA PIMENTA POR POMADA
E ACREDITA EM SACI, ALMA PENADA
PODE ACHAR QUE UM BICHO ESCONJURADO
SANGUINÁRIO, FEROZ E DESGRAÇADO
DE REPENTE SE TORNA PURO E SANTO
SAI PREGANDO E REZANDO PELOS CANTOS
ENTOANDO MARTELO AGALOPADO”
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri