Nesta semana, recebi um telefonema de um casal de diplomatas que estava num país da América do Sul. A voz do outro lado da linha era de pessoas desesperadas. Precisavam voltar para seu posto na Europa e, horas antes do voo, a companhia aérea deu aos passageiros uma péssima notícia: o avião teria de fazer escala no Brasil.
O medo de uma contaminação os levou a duvidar se deveriam embarcar, enquanto consultas legais eram realizadas com as entidades onde trabalhavam para saber se passar pelo Brasil representaria um risco.
Há poucos dias, levei meu filho caçula ao dentista e, ao ver que era eu quem o acompanhava, o profissional imediatamente deu um passo para trás e perguntou: você não esteve recentemente no Brasil, não é?
Nesta sexta-feira, ao entrar na sede da ONU em Genebra, fui parado pelo correspondente do New York Times assombrado com o que leu sobre a reação do presidente Jair Bolsonaro diante da crise.
Em alguns locais, os comentários vêm permeados por ironias e até uma solidariedade sincera com o que ocorre no Brasil. Em outros, o tratamento vem de forma mais séria. Mas todos com o mesmo sentido: a desconfiança sobre o país é profunda.
Os berros das manchetes dos jornais britânicos estampavam uma “caçada” das autoridades sanitárias em busca de uma pessoa que estaria com o “vírus brasileiro”. De tanto usar a nacionalidade chinesa para deliberadamente designar a doença, Jair Bolsonaro e sua milícia digital passaram a ter de engolir de seu próprio veneno ao ver o nome do Brasil, agora, qualificar um vírus ainda mais perigoso.
Aeroportos de todo o mundo passaram a tratar qualquer um vindo do país como suspeito, enquanto a suspensão de conexões aéreas e fechamentos de fronteiras se ampliam e se estendem.
A ideia de que somos pária no mundo não é verdade. Isso já está ultrapassado. Hoje, somos uma das ameaças. Em 24 horas, mais de 20% dos novos contaminados no planeta pela covid-19 estavam no Brasil. Na última semana, representamos 12% de todos os mortos. E pior: não há controle e nem uma estratégia para sair de um velório que parece não ter fim.
Dificilmente os europeus têm alguma legitimidade para nos dar uma lição de moral sobre a pandemia. Basta ver o que ocorreu com a mutação identificada no Reino Unido e que se espalhou com uma rapidez importante. Tampouco há espaço para críticas sobre a vacinação, já que o continente patina também nesse capítulo.
Mas, no caso brasileiro, a preocupação não se limita às novas características da mutação do vírus. A ameaça que alimenta a desconfiança vem de quem está no poder.
Um dos alertas feitos por cientistas nas reuniões internacionais se refere ao “apagão” de dados no Brasil sobre a circulação da variante encontrada em Manaus. Para outros, o que existe no país é o equivalente a um grupo de bombeiros cegos enviados a combater um incêndio.
Entre a cúpula da OMS, uma frase inconformada é ouvida sempre que o assunto é o drama brasileiro: “onde estão vocês? onde estão aqueles institutos e compromisso público que transformou o Brasil em referência em saúde pública?”. Um dos principais dirigentes da entidade é ainda explícito quando eu o questionei sobre o que achava de Bolsonaro: “louco, louco”.
Apresentado como um país doente e sem rumo, com um presidente negacionista e incapaz de dar uma resposta, o Brasil vive o seu pior momento no palco internacional desde o fim do Regime Militar.
Denunciado de forma frequente por abandonar sua população à morte e sem credibilidade alguma quando toma a palavra nos fóruns internacionais, o governo tomou ações que garantiram que o vírus da covid-19 não apenas destruísse vidas. Mas a reputação de uma nação, de uma economia e de uma imagem construída ao longo de décadas.
Se os incêndios na Amazônia em 2019 elevaram Bolsonaro a uma espécie de “vilão do mundo”, sua gestão da pandemia nos tornou tóxicos aos olhos do planeta.
Não sabemos quantos ainda morreremos até o final dessa crise sanitária, nem se nos transformaremos no “misterioso país das lágrimas” ao final da pandemia. Mas, entre os efeitos colaterais do “vírus brasileiro”, já temos algumas certezas: uma parcela da história do país vem sendo enterrada em cada caixão, assim como seu lugar no mundo.
Jamil Chade é correspondente na Europa há duas décadas e tem seu escritório na sede da ONU em Genebra. Com passagens por mais de 70 países, o jornalista paulistano também faz parte de uma rede de especialistas no combate à corrupção da entidade Transparência Internacional, foi presidente da Associação da Imprensa Estrangeira na Suíça e contribui regularmente com veículos internacionais como BBC, CNN, CCTV, Al Jazeera, France24, La Sexta e outros. Vivendo na Suíça desde o ano 2000, Chade é autor de cinco livros, dois dos quais foram finalistas do Prêmio Jabuti. Entre os prêmios recebidos, o jornalista foi eleito duas vezes como o melhor correspondente brasileiro no exterior pela entidade Comunique-se.
Publicado originalmente no UOL