Enquanto seus efeitos predominam de forma interna, as doenças mentais já são suficientes para gerar estigmas. Quando os efeitos transpõem para o exterior, afetando rotinas de trabalho, a realidade se agrava. A busca por apoio é visível em registros do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) que mostram que, no Ceará, a demanda por concessão de auxílios-doença, auxílio-acidente e aposentadoria por invalidez relacionadas a doenças mentais aumentou notavelmente em 2020.
O cenário até então indicava uma mudança discreta, mas positiva. Nos anos anteriores, a tendência era de ascensão na quantidade de pedidos de auxílio dessa natureza – em 2018, o Ceará teve um total de 6.685 demandas. Já em 2019, o número baixou para 6.481. A alteração mais brusca, porém, se deu no ano seguinte, quando o INSS contabilizou 8.289 pedidos no Estado. Essa disparidade representa um aumento de aproximadamente 27,8%.
O motivo mais frequente entre as demandas feitas ao Instituto em 2020, no Ceará, foi o transtorno misto ansioso e depressivo, como é identificado na Classificação Internacional de Doenças (CID). Por essa causa, foram protocolados 668 pedidos por auxílio ou aposentadoria por invalidez.
No contexto da pandemia, é possível relacionar esse aumento aos efeitos sociais provocados pelo coronavírus, conforme descreve Fábio Gomes, psiquiatra do Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC).
“Um dos sintomas da depressão é a falta de esperança. A pessoa não acredita que o futuro vai ser melhor que o presente. Quando a pandemia veio, nós tínhamos um futuro totalmente incerto, não se sabia se iríamos continuar vivos. Então houve uma piora na saúde mental de todo mundo, não só no Brasil”, afirma.
O médico, que também é professor do departamento de Medicina Clínica da Universidade Federal do Ceará (UFC), reforça que talvez os efeitos sobre a saúde mental tenham sido menos severos entre a população de países onde o serviço público acolhe pacientes dessa ordem com uma estrutura melhor. “Aqui, não. Obviamente, as equipes de profissionais dessa área fazem de tudo para que os pacientes tenham uma vida melhor, mas o número de trabalhadores é diminuto em relação à demanda atual da nossa sociedade”, ressalta.
Âmbito judicial
No que diz respeito às demandas por auxílio, há algumas etapas a serem cumpridas. O advogado João Ítalo Coelho, presidente da Comissão de Direito Previdenciário e Assistência Social da OAB-CE, explica que se a doença mental surgir na fase adulta, após cumprida a carência laboral, o trabalhador pode pedir um benefício temporário – como o auxílio-incapacidade temporária –, ou uma aposentadoria por incapacidade permanente.
“É bem complexo, porque nessas perícias o perito tem poucos minutos pra avaliar uma incapacidade mental. O que a gente aconselha é que a pessoa procure ter uma documentação médica robusta, com laudos bem feitos, históricos de acompanhamento psiquiátrico para poder conseguir comprovar na perícia que embora não sejam constantes, por exemplo, os episódios de instabilidade incapacitam para a vida laboral”, orienta.
Para isso, o primeiro passo é consultar o médico de rotina e conseguir um laudo detalhado, que indique o código do transtorno psicológico na Classificação Internacional de Doenças. O laudo deve descrever a doença e a incapacidade em si, abordando o que o paciente está sofrendo e se isso inviabiliza o trabalho.
Em seguida, o paciente deve ir até a Agência da Previdência Social e requerer o auxílio-doença ou a aposentadoria por invalidez. Só então será marcada uma perícia e, após isso, o benefício é concedido ou não. Caso não haja a concessão, é possível recorrer judicialmente.
Sensação de pânico
No caso de Tarcio Lessa, 52, uma documentação completa de histórico médico nem sempre foi suficiente. Ele convive com esquizofrenia desde a infância, precisa de medicamentos e se consulta com um psiquiatra há mais de 10 anos. O processo de perícia para receber o auxílio-doença se repete a cada seis meses, e nem sempre a resposta é positiva. No último dia 5 de fevereiro, por exemplo, ele teve o benefício negado.
“Eu trabalhava com vendas até 2017. Na última vez em que eu deixei de receber o auxílio e voltei para a empresa, eles me mandaram embora. Estou desempregado até hoje por conta do meu problema, por não poder trabalhar, e estou insistindo com o meu auxílio-doença. Eu tive perícia médica há pouco tempo, e recusaram novamente o meu auxílio. Tive que procurar advogados e passei tudo pra eles. Vão recorrer, aí eu fico aguardando remarcarem uma perícia médica com um perito do juiz”, revela.
Sem o benefício, Tarcio não tem mais condições de pagar pelos serviços do psiquiatra que o acompanhava na rede de saúde particular – antes mantidos pelo plano de saúde oferecido na empresa em que trabalhava. Agora, seu tratamento acontece no Sistema Único de Saúde (SUS), onde é assistido por um psiquiatra, uma psicóloga e uma assistente social.
Ele ainda se lembra das sensações que tornavam impossível a sua rotina de trabalho. A situação começou a se tornar insustentável em 2013.
“Começou a me incomodar quando eu estava perto de muitas pessoas, me dava pânico, medo, falta de ar. Eu simplesmente me levantava, pegava minhas coisas e ia embora. Eu tinha taquicardia, dificuldade pra respirar, não conseguia ficar perto de multidão”, diz.
Hoje, o cearense está com os medicamentos em dia, mas a sensação de pânico é constante e se agravou durante a pandemia. Na maior parte do ano passado, Tarcio deixou de comparecer às consultas por medo de sair de casa. “Não consigo trabalhar, não consigo emprego. Preciso recorrer a esse auxílio. E sempre que se aproxima da perícia, eu me sinto pior, me dá mais ansiedade, falta de ar, fico tremendo. É muito difícil”, lamenta.
Tratamento
Para pacientes nesse perfil, assim como em quaisquer outros âmbitos do tratamento em saúde mental, a primeira recomendação é buscar ajuda profissional – seja na área da Psiquiatria, Psicologia ou Clínica geral, de acordo com o psicólogo João Ilo Barbosa.
“Tem os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) em Fortaleza, que fazem um trabalho voltado pra esse tipo de problema. Claro, muito superlotados, tem espera, mas existe a possibilidade. O primeiro passo é esse, buscar auxílio profissional. E comunicar isso no trabalho”, reforça.
Para Fábio Gomes, detectar o transtorno e tratá-lo precocemente é um fator crucial para a boa recuperação do paciente. O mais importante é não esperar que a condição se agrave. Ele cita, ainda, as “regras básicas de saúde mental”, que incluem praticar atividades físicas, ter uma alimentação adequada, evitar estresses desnecessários e procurar dormir bem.
“É preciso entender que ter um transtorno de ansiedade ou depressão não te torna melhor ou pior que as outras pessoas. Você tem uma doença que precisa ser encarada de frente. A pessoa deve saber que pode ter acesso ao sistema de saúde de forma precoce no processo de adoecimento dela. Quanto mais cedo tratar, melhor”, garante o psiquiatra.
Por Barbara Câmara
Fonte: Diário do Nordeste