Após determinação do presidente Jair Bolsonaro, o Ministério da Saúde divulgou nesta quarta-feira (20) um documento que amplia a possibilidade de uso da cloroquina e da hidroxicloroquina também para pacientes com sintomas leves do novo coronavírus. O próprio texto, porém, reconhece que não há evidências suficientes de eficácia, e o termo de consentimento do paciente cita risco de agravamento da condição clínica.
Até então, o protocolo adotado pelo Ministério da Saúde previa o uso do medicamento apenas por pacientes graves e críticos e com monitoramento em hospitais.
A decisão ocorre após diversos estudos mostrarem que os medicamentos não só não têm efeito contra a Covid-19 como podem aumentar o risco cardíaco. Entidades médicas também contraindicaram o medicamento para tratamento da Covid-19. A OMS (Organização Mundial da Saúde) afirmou na terça (19) que não há provas de que a hidroxicloroquina ou qualquer outro medicamento possa curar ou prevenir a Covid-19 e que o uso inapropriado da hidroxicloroquina por causar efeitos colaterais graves que podem levar à morte.
Um dos maiores estudos feitos até agora não encontrou redução de mortalidade por Covid-19 entre pessoas que foram medicadas com hidroxicloroquina. A pesquisa observacional com 1.438 pacientes de Nova York foi publicada no dia 11 de maio na revista Jama, da Associação Médica Americana, um dos principais periódicos médicos do mundo.
Uma outra grande pesquisa observacional, com 1.376 pacientes de Nova York e publicada na prestigiosa revista científica The New England Journal of Medicine no dia 7 de maio, também apontou que não foram encontradas evidências de que o uso da hidroxicloroquina reduza mortes ou intubações.
O novo protocolo do Ministério da Saúde prevê a indicação de cloroquina ou hidroxicloroquina com azitromicina com dosagens diferentes conforme a sequência do tratamento e o quadro do paciente. Essa combinação de medicamentos foi justamente a contraindicada pelo Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA (Niaid, na sigla em inglês) no fim de abril por causa de sua potencial toxicidade.
Apesar da nova indicação, o próprio documento reconhece que não há evidências suficientes de eficácia. Para justificar a ampliação do uso da cloroquina, o texto cita “larga experiência” do remédio para outras doenças e a falta de outro tratamento disponível para a Covid-19. O protocolo deixa a prescrição a critério médico e após análise de exames.
“Apesar de serem medicações utilizadas em diversos protocolos e de possuírem atividade in vitro demonstrada contra o coronavírus, ainda não há meta-análises de ensaios clínicos multicêntricos, controlados, cegos e randomizados que comprovem o beneficio inequívoco dessas medicações para o tratamento da Covid-19”, diz o protocolo. “Assim, fica a critério do médico a prescrição, sendo necessária também a vontade declarada do paciente”, completa.
Para isso, o paciente deve assinar um termo de consentimento que afirma que a cloroquina e hidroxicloroquina podem causar efeitos colaterais “como redução dos glóbulos brancos, disfunção do fígado, disfunção cardíaca e arritmias, e alterações visuais por danos na retina”.
O termo de consentimento afirma ainda que “não existe garantia de resultados positivos, e que o medicamento proposto pode inclusive agravar a condição clínica, pois não há estudos demonstrando benefícios clínicos”.
Por outro lado, diz que a cloroquina e a hidroxicloroquina são medicamentos disponíveis há muitos anos para prevenção e tratamento da malária e outras doenças e que “um estudo francês mostrou que a eliminação do coronavírus da garganta de portadores da Covid-19 se deu de forma mais rápida com a utilização da combinação de hidroxicloroquina e o antibiótico azitromicina, quando comparados a pacientes que não usaram as drogas”.
“Entretanto, não há, até o momento, estudos demonstrando melhora clínica dos pacientes com Covid-19 quando tratados com hidroxicloroquina”, completa o termo, que deve ser assinado pelo médico e paciente.
A divergência em torno do uso da cloroquina é apontada como o principal motivo da saída do ex-ministro Nelson Teich, que pediu demissão na última sexta-feira (15).
Dias antes, Bolsonaro havia deixado claro que faria a mudança no protocolo, mesmo sem concordância do ministro.
“Votaram em mim para eu decidir e essa questão da cloroquina passa por mim”, afirmou em teleconferência com empresários. “Não pode mudar o protocolo agora? Pode mudar e vai mudar”, declarou na ocasião.
Ao deixar o Palácio da Alvorada, no início da manhã, Bolsonaro parou para falar com profissionais de limpeza urbana que trabalhavam em um trecho no caminho do comboio presidencial. Ele foi abordado sobre quem será o novo ministro da Saúde, posto ocupado interinamente pelo general Eduardo Pazuello. “Ele vai ficar por muito tempo, este que está lá. Vou mudar não. Ele é um bom gestor e vai ter uma equipe boa de médicos abaixo dele”, disse Bolsonaro.
A possibilidade de mudança no protocolo gerou reação entre entidades da área médica. Um documento divulgado pela Associação de Medicina Intensiva Brasileira, Sociedade Brasileira de Infectologia e Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia recomenda a não utilização de hidroxicloroquina, cloroquina e de suas associações com azitromicina na rotina de tratamento da Covid-19.
Médicos que atuam na rede pública também vêm relatando temor de que a mudança aumente a pressão pela indicação do medicamento.
Uma primeira versão do documento foi apresentada ao presidente Jair Bolsonaro na terça-feira (19) pelo ministro da Saúde interino, o general Eduardo Pazuello.
Horas depois, em live transmitida nas redes sociais, Bolsonaro informou que o documento seria divulgado nesta quarta-feira e que o modelo não obrigaria o paciente a ser medicamento com a substância, mas daria a liberdade para que ele use o remédio quando necessário.
“O que é a democracia? Você não quer? Você não faz. Você não é obrigado a tomar cloroquina”, disse. “Quem é de direita toma cloroquina. Quem é de esquerda toma Tubaína”, ironizou, referindo-se a uma marca de refrigerante.
Segundo o Ministério da Saúde, o documento divulgado nesta quarta segue parecer do Conselho Federal de Medicina.
Ainda em abril, o conselho emitiu uma autorização para que médicos pudessem prescrever o medicamento também para casos leves e uso domiciliar, mediante termo de consentimento do paciente ou familiares.
A autarquia justificou o aval devido à ausência de outros tratamentos disponíveis, embora sem evidência científica.
Embora fale em orientações para tratamento de “pacientes com diagnóstico da Covid-19”, o documento do Ministério da Saúde não deixa expressa a necessidade de exames para confirmação da infecção como medida prévia ao início do tratamento.
O parecer do CFM, por sua vez, fala em considerar o uso em pacientes com sintomas leves nos casos “em que tenham sido descartadas outras viroses (como influenza, H1N1, dengue), e que tenham confirmado o diagnóstico de Covid-19.”
Prevista em protocolo anterior, a necessidade de eletrocardiograma aparece só no 18º item do documento, sem explicitar a frequência de acompanhamento. O documento diz ainda que o tratamento é contraindicado para grávidas, pacientes com retinopatia e maculopatia secundária ao uso do medicamento já diagnosticada, hipersensibilidade ao medicamento e miastenia grave (quando há fraqueza muscular, com possibilidade de queda das pálpebras e dificuldade de engolir e mastigar).
Também deve ser usado com precaução em portadores de doenças cardíacas, hepáticas ou renais, hematoporfiria e doenças mentais.
Em crianças, o parecer recomenda dar prioridade ao uso de hidroxicloroquina “devido à toxicidade da cloroquina”.
O quadro é considerado moderado em caso de tosse e febre persistentes ou piora progressiva de outros sintomas relacionados a Covid, como prostação e diarreia. Ou, ainda, diante da presença de febre ou tosse persistente e presença de fatores de risco, como doenças associadas.
Neste caso, o documento recomenda que o médico considere a possibilidade de internação e tome outros procedimentos, como afastar outras causas de gravidade e avaliar a presença de infecção bacteriana.
Já em quadros graves, descritos como quando há dispneia (falta de ar) e hipotensão (pressão baixa), o protocolo prevê que o médico considere também o uso de imunoglobulina.
Indicada para tratamento de doenças como malária, artrite e lupus, a cloroquina passou a chamar atenção após o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, anunciar que o medicamento poderia ter resultado positivo para o coronavírus.
Trump disse na segunda-feira (18) que está tomando hidroxicloroquina como prevenção contra o coronavírus. Não há, porém, evidência científica de que o remédio tenha eficácia no tratamento de Covid-19 nem que sirva como barreira contra a infecção pelo vírus.
Fonte: Folhapress