A pandemia trouxe impactos que ainda serão sentidos por muito tempo – nem todos já evidentes. Um destes se traduz em números e causa preocupação. Nos seis primeiros meses deste ano, o Ceará voltou a registrar fila de espera para transplante de córneas, situação que não acontecia desde 2016. A região do Cariri, referência na captação de córneas, teve redução de 80% durante a pandemia.
A Organização de Procura de Órgãos (OPO) Cariri, localizada no Hospital Regional do Cariri (HRC), em Juazeiro do Norte, realizou apenas 14 captações – sendo oito de córneas e seis de múltiplos órgãos. No mesmo período do ano passado, foram realizadas 49 captações, sendo 40 de córneas. O número representa uma diminuição de 80% nas doações de córneas e 71,4% no número total de captações.
O decréscimo fez com que, hoje, aproximadamente 90 pessoas estejam aguardando um transplante de córneas. Para rins, o número chega a quase mil. A informação foi repassada por uma fonte ligada à OPO, que preferiu não se identificar.
“É uma situação triste porque deixamos de coletar as córneas, que são a grande maioria das captações de ‘coração parado’. Quando paramos, tínhamos uma fila zero”, explica.
O transplante de órgãos consiste na reposição de um órgão (fígado, rim, coração, pulmão ou pâncreas) ou tecido (córneas, medula óssea ou ossos) de uma pessoa doente por outro órgão ou tecido saudável de um doador, estando ele vivo ou morto. A situação confortável de outrora possibilitou ao Ceará enviar doações a outros estados. No último ano, para ter ideia, mais de 10 unidades federativas chegaram a receber captações cearenses.
Doação
Doadores com o chamado “coração parado” são aqueles com confirmação de morte cardiorespiratória. No País, a Lei 9.434 estabelece que a doação após a morte só pode ser feita quando constatada a morte encefálica. “No período normal, a pessoa entra na fila hoje e, no máximo, cinco dias depois já pode receber as córneas. Hoje, nós temos 91 pessoas na fila”, lamenta o profissional.
“As pessoas não deixam de adoecer. Também sempre vai entrar gente na fila. As 91 pessoas vão aguardar o momento do seu transplante”.
Além do HRC, recebem captações o Hospital São Francisco, no Crato, e hospitais São Vicente de Paula e Santo Antônio, em Barbalha. A ampliação na região possibilitou um maior número de órgãos recebidos, o que figura o Cariri como referência. A importância do movimento é clara e palpável: um único doador pode salvar, em média, até dez pessoas, podendo chegar a 20.
Uma única pessoa pode doar córneas, rins, esclera, pâncreas, pulmões, coração, fígado, pele, ossos e válvulas cardíacas.
IMPORTANTE (Ministério da Saúde): A doação só poder acontecer, no caso de paciente em morte encefálica, se houver autorização de um familiar.
Tipos de doador
Doador vivo: Qualquer pessoa que concorde com a doação, desde que não prejudique sua própria saúde. Neste caso, o doador pode doar “um dos rins, parte do fígado, parte da medula óssea ou parte do pulmão”.
Doador falecido: Pacientes que tiveram morte encefálica, que são, geralmente, vítimas de acidentes cerebrais, como traumatismo craniano ou AVC.
Suspensão
A reportagem, o HRC explicou que uma nota técnica do Ministério da Saúde e Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), emitida em 25 de março, suspendeu a captação de tecidos no caso de coração parado.
Já para os casos de morte cerebral, durante a pandemia, “a captação só pode ser feita após a triagem do doador, onde são feitos exames para diagnóstico do SARS-COV-2”, destacou, por meio de sua assessoria de imprensa. Na avaliação da fonte da OPO ouvida pela reportagem, com as pessoas “ficando mais em casa”, o número de possíveis doadores com morte encefálica, geralmente vítimas de acidentes, como de moto, também ficou reduzido.
A redução na captação tem consequência no número de transplantes realizados. Segundo a Secretaria da Saúde (Sesa) do Ceará, no primeiro semestre deste ano, foram realizados 396 transplantes no Ceará – sendo 212 de córnea. No mesmo período do ano passado, o Estado havia realizado 762 transplantes, sendo 426 de córnea. Em 2018, no primeiro semestre, foram 769 transplantes, sendo 437 de córneas.
“Por se tratar de uma doença infecciosa, as recomendações do Ministério da Saúde, conforme nota técnica nº 25/2020, foram a suspensão da busca ativa e da captação para doação de tecidos em doador falecido por parada cardiorrespiratória e a realização de transplantes somente em situações de urgência, após investigação laboratorial confirmatória para SARS-CoV-2”, destaca a Sesa.
Ainda conforme a Pasta, já foi solicitado novo parecer ao Ministério da Saúde para reavaliação das recomendações e uma possível “retomada gradual e segura dos transplantes de córnea no Estado”. O documento foi encaminhado à Coordenação Geral do Sistema Nacional de Transplantes, em 3 de julho.
“O ofício da Sesa, por meio da Central Estadual de Transplantes (CET) do Ceará, trata-se de um encaminhamento de reunião da CET/CE com a Câmara Técnica de Transplante de Córnea, ocorrida no último dia 29 de junho”.
Ministério da Saúde
Questionado sobre as medidas, o Ministério da Saúde informou que “não há recomendação, por parte da Pasta, para suspensão temporária de captação de órgãos em razão da pandemia da Covid-19. Contudo, no mundo inteiro e no Brasil, tem sido observada queda nas doações e nos transplantes, neste momento, se tornando um desafio para os países, tanto em termos de doação quanto da segurança do paciente e equipes, que estão em primeiro lugar na lista de prioridades”.
O Ministério da Saúde e Anvisa emitiram nota técnica em que consta a recomendação de não realizar transplantes de falecidos da Covid-19. No caso dos transplantes de órgãos sólidos, a nota traz recomendações para dar segurança ao procedimento, com atenção aos riscos, desde a triagem de doadores e receptores, uso do EPIs, ao acompanhamento do paciente transplantado e principalmente a medicação imunossupressora a ser usada”.
Segundo o Ministério, dados preliminares apontam que, em março deste ano, o País realizou 295 doações de órgãos, possibilitando a realização de 697 transplantes no território nacional. No mesmo período do último ano, haviam sido 277 doações e 734 transplantes efetuados. “Cada doação proporciona a realização de diversos órgãos”. A Pasta reforçou que está trabalhando com ações focadas na segurança do profissional e dos pacientes.
Tempo de retirada de um órgão até o transplante (Sesa):
• Coração: de 4h a 6h;
• Pulmão: de 4h a 6h;
• Rins: até 48 horas;
• Fígado: de 12h a 24h;
• Pâncreas: de 12h a 24h;
• Ossos: até 5 anos;
• Córnea: 14 dias.
Veja aqui mais detalhes sobre a doação de órgãos.
Por Rodrigo Rodrigues
Fonte: Diário do Nordeste