Isolado politicamente, o presidente Jair Bolsonaro tem dado demonstrações de fragilidade emocional na condução da crise do coronavírus e buscado refúgio no setor militar para tentar retomar o controle do governo.
Em pelo menos uma ocasião recente, ele chorou ante interlocutores no Palácio do Planalto que não faziam parte de seu círculo mais íntimo.
Reclamou que sofre críticas incessantes e aponta adversários externos, com especial predileção pelos governadores João Doria (PSDB-SP) e Wilson Witzel (PSC-RJ).
Bolsonaro e os chefes estaduais têm medido forças, com o presidente defendendo medidas de isolamento parcial para grupos vulneráveis à Covid-19, enquanto os outros adotam as recomendações de quarentena da OMS.
O presidente está sem suporte interno unânime. Ministros do governo, a começar por Luiz Henrique Mandetta (Saúde), mas também o popular Sergio Moro (Justiça), defendem o isolamento social. Paulo Guedes (Economia) falou que preferia ficar em casa “como cidadão”.
Com isso, Bolsonaro se voltou para o seu meio de origem, o militar, cuja ala no governo havia sido reforçada no começo do ano após ter sido escanteada pelo chamado núcleo ideológico centrado nos filhos do presidente.
Devolveu protagonismo ao chefe da Casa Civil, general Walter Braga Netto, numa tentativa de unificar o discurso sobre a crise. O fez sob olhares desconfiados, dado que usualmente a palavra final é dele e dos filhos.
O resultado, de todo modo, foi desastroso do ponto de vista público. Em entrevista coletiva na segunda (30), Braga Netto comportou-se como um tutor de Mandetta e ainda especulou sua demissão.
Líderes no Congresso, a começar pelas cúpulas das duas Casas, ficaram horrorizados com a cena —reação que conta com alguma solidariedade partidária, já que Mandetta é deputado do DEM de Rodrigo Maia (Câmara) e Davi Alcolumbre (Senado).
Em trocas de ligações e mensagens durante a manhã desta terça (31), políticos se mostravam intrigados com o simbolismo da ação de Braga Netto.
Isso porque, também na véspera, havia chamado a atenção uma postagem no Twitter do ex-comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas.
Nela, o homem a quem Bolsonaro uma vez disse dever a eleição em 2018 defendeu sua “postura de coragem” na crise, justamente quando o presidente estava sob uma saraivada de críticas por ter ido ao comércio popular do entorno de Brasília no domingo.
Ainda na segunda, o Ministério da Defesa divulgou ordem do dia acerca dos 56 anos do golpe de 1964, chamando o movimento militar de “marco para a democracia”.
O ministro da pasta, general Fernando Azevedo, é considerado um moderado negociador. Hoje, é o ponto de ligação entre a ativa sob seu comando, a ala militar na qual tem em Braga Netto um ex-subordinado e o Judiciário, no qual atuou ao lado do presidente do Supremo, Dias Toffoli.
Na manhã deste 31 de março, o vice-presidente, general Hamilton Mourão, também enalteceu o golpe no Twitter, ainda que deixando uma hashtag dizendo que ele pertencia “à história”. O vice já havia se diferenciado do presidente ao defender o isolamento social.
Líderes partidários se perguntaram se havia alguma conexão entre os eventos envolvendo os fardados.
O que é possível dizer a esta altura é que há preocupação com o risco de instabilidade social devido aos impactos econômicos da pandemia, além daquilo que já era identificado como o perigo de os militares serem usados na disputa entre o presidente e os estados.
Associado a tudo isso, existe o temor de que a beligerância de Bolsonaro leve a crise a outro patamar, já que ele não conta mais nem com apoio no Congresso, nem com a boa vontade do Supremo desde que apoiou ato pedindo o fechamento das instituições.
Isso o diferencia, por exemplo, do premiê húngaro, Viktor Orbán, que ganhou poderes ditatoriais em meio à emergência sanitária.
Os militares têm sua imagem associada à do presidente e à sua ascensão ao poder. Como ele é considerado incontrolável, orientado pelo núcleo familiar, restaria uma contenção de danos para a própria classe.
Um general muito próximo de Villas Bôas ressalta outro aspecto. Apesar de muito respeitado e influente, o ex-comandante não representa mais a ativa e tem papel simbólico na ala militar empregada pelo governo.
Quando falou, o atual comandante do Exército, Edson Leal Pujol, asseverou a gravidade do problema, no momento em que Bolsonaro só chamava a Covid-19 de “gripezinha”.
Logo, sua fala pode apenas ser mais um registro de lealdade em momento difícil, cuja erosão da estabilidade emocional é tema de conversas no meio militar, além de externar a preocupação conhecida com radicalização nas ruas.
Em relação a 1964, militares ouvidos foram unânimes em destacar mais a parte benigna da ordem do dia, que insiste na submissão constitucional das Forças.
Já alguns políticos viram um recado acerca da prontidão dos militares caso a situação desande.
Um presidente de partido centrista brincou nervosamente que nem seria preciso um golpe, de resto uma virtual impossibilidade, bastaria ver Bolsonaro afastado para os militares de fato voltarem ao poder.
Para um político com trânsito intenso entre os fardados, é preciso olhar para a história. Está no DNA militar brasileiro a ideia de tutela sobre o poder civil, vide a sucessão de intervenções e golpes.
A erosão da credibilidade dos Poderes após a redemocratização, período no qual os militares ficaram quase sob mordaça pública, culminou com a eleição de um capitão reformado do Exército.
A liberação de energias seria inevitável, sustenta o político, porque ao longo dos anos o oficialato sempre viu sua versão para 1964 sub-representada após deixarem o poder em 1985.
Quando Azevedo assumiu, ele combinou com os comandantes que tudo o que dissesse respeito à ativa para público externo seria de sua responsabilidade, cabendo aos outros controlar as demandas internas. Assinar a nota, subscrita pelas três Forças, é um modo de fazer isso e ainda prestar contas ao generalato.
O risco maior, crê esse político, é a volta da ideia de tutela, e qual seria o papel de Bolsonaro no arranjo.
Fonte: Folhapress