Sempre confiei na ficção como a fórmula de um escritor se aproximar mais da realidade. Talvez, por isso mesmo, utilizo a memorialística como um simples arcabouço para as histórias e, a partir daí, vou colocando penduricalhos e adereços para torná-las mais interessantes e palatáveis. No fundo, este é sempre o artifício de quem se envolve com arte: procurar ângulos inusitados para dali flertar o universo. Muitas vezes é preciso colocar filtros, óculos de grau, para abrir o leque de possibilidades dos objetos observados. Vi críticas de amigos sobre a minha predileção por histórias bem humoradas, alegres e divertidas, cheias de nonsense. Para tantos, perco, com elas, a profundidade da existência e a possibilidade de mergulhar nas camadas mais abissais da alma humana. Com o bom humor, na visão mais crítica dos especialistas, fico apenas no Termoclina, na camada mais superficial dos oceanos, incapaz de observar a vida em toda a sua espessura. Por outro lado, imagino, que tendo optado por fitar o Plâncton, bebo mais da sua bioluminescência, plaino ao doce sabor mutante das vagas e do vento e firmo-me no local onde a vida se encontra mais presente e pulsante.
Claro que esta preferência não foi uma escolha pura e simples. Meu lado paterno é varzealegrense, um lugar onde o riso faz parte indissociável das pessoas. Impossível encontrar amigos e parentes sem que, imediatamente, o foco da conversa não salte para as presepadas, as potocas e histórias irreverentes dos conterrâneos. Convivi com meu avô, meus tios, primos, todos com a verve na ponta da língua, prontos para jogar uma “puia”, a qualquer instante. Meu pai e meus tios, como uma Sherazade, contavam e recontavam histórias infinitas, todas cheias de picardia e irreverência. Intimamente temiam a chegada do Sultão do Tempo com o seu apagador imperdoável. Nascido no Crato, convivi, de perto, com inúmeros outros presepeiros, figuras míticas que preenchiam nossos livros de mitologia, com as histórias mais engraçadas e estapafúrdias: Chico Soares, Padre Verdeixa, Melito, Asa Branca, Félix Cândido, Zé de Matos e muitos, muitos outros. Sem o talento de criar e recriar contos, lendas e fábulas e sem a capacidade teatral dos meus parentes de encená-los nas suas apresentações, resolvi escrever, com a certeza, meio inglória – ledo engano!- de que teriam, assim, alguma permanência. Perdoe-me assim, tendo optado pelo plâncton, alguma superficialidade na minha escrita, os textos são mais claros, menos tendentes ao sombrio e aos mistérios indevassáveis da existência. Não mergulhando profundamente, talvez temendo a asfixia, não os trarei, com certeza, nenhuma grande revelação digna de uma Fossa das Marianas, mas já ficarei feliz e realizado se lhes proporcionar alguma alegria, alguma felicidade e os afastar das perspectivas sempre mais tenebrosas das regiões mais abissais dos oceanos, com seus monstros desconhecidos e bizarros.
Tenho alguma dificuldade em falar dos meus parentes mais próximos, talvez porque, de alguma maneira, a impossibilidade de tê-los perto, fisicamente, já me amargure a alma. Ontem, um parente, em um telefonema, me lembrou de um tio e uma tia queridos. E decidi recontar a história divertida que ele guardou carinhosamente. Tio Zé Odimar casara com uma irmã de meu pai, tia Balbina, e sempre morou em Várzea Alegre. Foi, por um tempo, dono de um pequeno ônibus que fazia a linha para o Crato. Depois tornou-se funcionário público, trabalhando na Coletoria daquela cidade. A tia foi professora, cuidava de uma récua de filhos, alguns deles ainda residentes em Várzea Alegre. Nas férias, de meio e fim de ano, juntavam-se todos netos, no sítio de meu avô, Lagoa dos Órfãos, ali pertinho. Chegavam dezenas de meninos e meninas, com uma vitalidade incrível, própria da idade, mais parecendo uma peste de gafanhotos. Só regras militares para controlar um batalhão daqueles. As leis eram executadas por uma outra tia, à época ainda residente com meus avós, e que tinha que fazer cumprir as determinações a força de cipó de marmeleiro. Os netos foram assim criados quase que como irmãos, dividindo as alegrias da vida no sítio, nas férias, com as penitências pelos castigos cometidos.
O tio Zé Odimar tinha como uma das suas iguarias preferidas, um pirão de Mocotó que era preparado diligentemente por tia Balbina e que finalizava, sempre, com um toque de Chef. Ela, com um martelo, batia na ponta do osso para sacar de dentro o tutano que seria servido como cobertura do pirão. Prato impensável nos dias de hoje, depois que um sacana achou de descobrir um tal de colesterol. Ao menos duas ou três vezes por semana, o tio se regalava com aquele prato que dava sustança e tinha fama de levantar até velho na missa de sétimo dia. Uma vez, no entanto, aconteceu um pequeno acidente. Tia Balbina quando martelava o osso em busca de extirpar o tutano, o martelo resvalou e foi de encontro ao dedão da mão esquerda. A tia fez uma careta danada, o dedo inchou de imediato como se tivesse levado ferrão de marimbondo de chapéu. Com o passar dos dias, a coisa piorou pois “afuleimou” e virou um panarício, fazendo com que a tia sofresse por mais de quinze dias até que o bicho veio a furo, às custas de muita compressa de água quente e pomada de basilicão. Depois do sofrimento, tia Balbina disse ao marido que continuaria fazendo o pirão, com a mesma diligência, mas nunca mais teria coragem de bater o tutano. O tio Zé Odimar, que presenciara o sofrimento da esposa, acatou de bom grado a decisão: não havia problema. Quando fosse dia de pirão e já estivesse pronto, mandasse avisá-lo na Coletoria que ele viria imediatamente e providenciaria a extração do tutano. Só não demorasse muito pra não esfriar. Pirão, café e mulher, só prestam quentes, vaticinou do alto dos seus sessentinha.
Na outra semana, pirão quente, a tia pediu ao filho, Aldenízio, um menino danado, de uns dez anos, para que fosse de bicicleta até ao trabalho do pai e o convocasse imediatamente para vir finalizar o prato principal da casa. Aldenízio saiu disparado e, quando chegou na pracinha defronte da Coletoria, Zé Odimar vinha saindo para o almoço, acompanhado do prefeito da cidade e de um fiscal de rendas que havia chegado de Fortaleza. Ante a praça apinhada de gente Aldenízio gritou, do lado de cá, a plenos pulmões:
— Pai, pai! Mamãe disse que tu fosse agora mesmo pra casa! Ela disse que já tá quente! Disse que tá na hora de fazer…
Aí fez o gesto dúbio para os que não tinham acompanhado os últimos, acontecimentos, simulando quem tira tutano, batendo a palma da mão direita contra a mão esquerda fechada: top, top, top…
Na praça foi um quiririquiqui danado. O fiscal de rendas quis saber imediatamente, a receita daquela iguaria que parecia ter poderes afrodisíacos invejáveis, levando até a urgências de escandelos em plena luz do dia.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
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