— Vocês não sabem do absurdo! Rauzito foi recolhido à Fundação Casa, hoje! Foi pego no sinal cheirando cola! Pode?
A notícia se alastrou como faísca correndo no estopim. Um menino de oito anos, já viciado em drogas? Onde vamos parar? Rauzito era conhecido de muita gente. Franzino, portando sempre uma camiseta puída de lycra e uma bermuda de longa vida, invariavelmente suja, fazia ponto em um dos sinais da pomposa rua Abelardo Studart, vendendo balas, limpando para-brisas — entre o vermelho e o verde — e pastorando carros estacionados ao longo da via. Tinha por casa uma marquise de uma loja de departamentos próxima dali. A reação de surpresa do povo, por incrível que possa parecer, foi pelo vício precoce de Rauzito e não pelo outro absurdo que já se tornara normalidade: uma criança de oito anos ter por lar a via pública. Antes a população já se indignara quando Rauzito, defendendo seu território, a sombra da marquise, agredira um outro guri que se fez de posseiro, sem imaginar que já lhe pertencia por usucapião. Quem vive na cidade não entende das leis da selva! E agora o povo parecia boquiaberto com a descoberta de que já na infância o vício estava se alastrando.
D. Veridiana, uma coquete da vila, chacoalhando suas joias, pediu donativos, num clube de serviço, para a infância abandonada da cidade: — A Caridade é o Caminho para o céu! O Padre Gilbertino, na homilia daquele dia, explicou que o vício era a presença do demônio no seio da sociedade e pregou um reforço nos óbolos para ajudar a infância desvalida. O prefeito Sinderval Codó, em entrevista na rádio local, informou ter colocado toda a Secretaria de Ação Social na investigação das causas daquele crime e a polícia já abrira inquérito para descobrir os responsáveis pela distribuição da droga nas ruas. Cacildo Honório, “A Voz de Ouro do Rádio”, pediu providências urgentes da polícia na repressão ao tráfico de drogas no município que se tornara uma calamidade. Onildo Jurema, o presidente do Partido Comunista Operário Cristão, o PCOC, que faz oposição ao atual governante, propôs a deposição imediata do prefeito que, segundo ele, era o proprietário do Jogo do Bicho local e sócio da Facção que comandava o tráfico na região. Em meio à indignação geral de superfície, as múltiplas propostas de solução do caso Rauzito, uma pergunta permaneceu no ar, perfeitamente intocada, procurando uma resposta, assim como os meninos moradores de vias públicas procuravam o Estado: Por que Rauzito, de oito anos, sem pais e sem país, tem por casa uma marquise?
Na Fundação Casa, Rauzito chega agitado, confuso. Menos por não entender o motivo da sua detenção do que pelo medo de perder, para os outros zumbis que invadem a rua, a única propriedade que possui por usucapião: a marquise. Alimentado, dorme à noite numa cama mais confortável do que a sua, mas, ansioso, sabe que não lhe pertence. Encontra-se com uma tropa de iguais abandonados, aqueles que nunca tiveram infância, apenas a luta pela sobrevivência: um monstro a cada dia, um fantasma em cada esquina. Apesar de tudo, a desgraça comum lhe traz algum conforto, talvez por ser o único socialismo que conhece: o da miséria. No dia seguinte, a Assistente Social o entrevista junto com a psicóloga.
— Rauzito, por que você decidiu morar na rua? Você não tinha pai e mãe?
— Meu pai nunca conheci. Mamãe disse que era o patrão dela na casa em que ela trabalhava, mas era casado e nunca assumiu. Conheci só meu padrasto que batia e abusava de mim desde eu bem pequenininho.
— E foi por isso que você fugiu de casa e foi para a rua?
— Não, a polícia, antes de mim, matou meu padrasto. Ele era descuidista. Um dia se descuidou. Fui para a rua quando minha mãe morreu. Era viciada na “pedra” e, um dia, fumou mais do que devia.
— E por que você começou a cheirar cola, para anestesiar e aguentar a viver na rua?
— Não, porque só quando cheiro a latinha de cola é quando eu consigo ver e conversar com minha mãe.
A Psicologia e a Assistência Social viram-se, de repente, diante do sinal vermelho. Tinham há pouco tornado Rauzito, novamente, um sem teto e, agora, lhes pairava aquela sensação de que haviam matado sua mãe por uma segunda vez. Era justo arrancar-lhe das mãos a latinha que, ao menos, lhe proporcionava o bálsamo do sonho, sem que lhe ofertassem, em troca, um mundo mais justo e respirável?
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri