Há pessoas que são como pássaros, singram com seu voo os nossos horizontes, sem estardalhaço, silenciosamente, como se temessem, de alguma maneira, quebrar a harmonia do mundo. Como um gatinho andando sobre uma mesa de cristais. Mas, sem que ao menos dessem conta, trazem uma nova luz, uma nova cintilação para nossa manhã. Nesses dias, o Crato perdeu um desses artistas contorcionistas da vida. Enoque partiu depois do Carnaval, esperou as Cinzas para, talvez, não atrapalhar a festa de tantos. Teve uma travessia terrestre simples mas marcante. Na juventude, voltou-se ao futebol e foi um dos maiores craques que já pisaram os campos empoeirados da nossa vila. Fez parte de uma plêiade de artistas da bola como: Anduiá, Netinho, Dote, Chico Curto, Pinto, que entendiam que futebol não é um esporte, mas uma dança. Usavam os pés como os pintores usam seus pincéis: para fazer Arte. Depois da aposentadoria, brincando com o tempo, como um menino brinca com bola de gude, vendia livrinhos de faroeste ali defronte ao antigo Banco Caixeral. O pequeno comércio ambulante ajudava menos a engrossar a aposentadoria e mais a conversar com um e com outro e, assim, ir debulhando o rosário das horas.
Talvez, no entanto, o que mais tenha ficado na memória dos seus conterrâneos tenha sido a sua atividade como Chef de Cachorro Quente, na Exposição do Crato. Junto com seu ajudante de obras, uma espécie de Sancho Pança, o “Batatinha”, Enoque fazia o mais saboroso e inesquecível sanduba de que se tem notícia na Cidade de Frei Carlos. O Cachorro Quente de Enoque deveria ter sido tombado como Patrimônio Imaterial e Gustativo do Crato, assim como o Filhós São José. Abandonou, anos depois, sob protestos de muitos, a profissão: queixava-se, já naquela época, dos altos valores cobrados para colocar o seu quiosquizinho no Parque de Exposições que virara, pomposamente, Expocrato e cobrava pedágio por conta disso.
Quando o inverno da existência chegou, não passou frio. Os rigores da travessia lhe tinham dado já cobertores. Levou a mesma vida humilde e ativa ali na Caixa D´Água, com a família estruturada, os vizinhos e amigos. Diariamente, postava ainda a cadeira na calçada, de noitinha para pôr em dia as últimas notícias da vila e contemplar ainda alguns fiapos de lua e estrelas por trás das luzes de neon. Personalidade forte, enfrentou os achaques típicos da velhice com a mesma disposição que combatia os times adversários na juventude. Quando percebeu que a partida estava praticamente perdida, deixou-se levar pelas marés inexoráveis do tempo, até que o apito final soasse já a mais de cinquenta minutos do segundo tempo da prorrogação. Perdeu a partida, mas ganhara o campeonato.
A história oficial louva apenas os vultos de brilho tantas vezes falso emitido pelos holofotes da economia e da política. Parece que toda a beleza da manhã resume-se à cintilância ofuscante do sol, foge-nos a beleza oculta do entreabrir das flores do campo e do voo sinuoso do pássaro que corta diagonalmente o esplendor da aurora nascente. Grande Enoque! Uma vida grandiosa escondida em pequenos e minúsculos detalhes.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
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