Pedro Saraiva Leão, médico e escritor cearense, dizia que os dois maiores inimigos dos livros são as viúvas e os cupins. Para combater os isópteros, como são chamados os bichinhos, existem lá os inseticidas, já para a parentada, a coisa é bem mais complicada. No Instituto Cultural do Cariri temos convivido com essa realidade no nosso dia a dia. Covil de várias gerações de intelectuais, o ICC termina sendo o fiel depositário de bibliotecas pessoais que, antes de se dissiparem nos monturos e sebos, chagam até nós, a pedido de familiares.
O livro, um bem precioso de muitos colecionadores do passado, logo do desaparecimento de seus donos, torna-se um estorvo para os que ficam. E são muitas as razões deste desprezo. Primeiro, como os discos e os perfumes, o livro é um item bastante pessoal. Tirante os clássicos eternos e indestrutíveis, cada um é tangido por um gosto íntimo e intransferível. Uma biblioteca assemelha-se a um closet, dificilmente os itens ali expostos contemplam as preferências de todos. Ademais o livro pesa bastante e toma espaço de apartamentos cada dia mais minúsculos e atulhados de estrovengas eletrônicas. Depois, é sempre bom lembrar, que as últimas gerações são bem mais ligadas à imagem do que ao folhoso. Assistem à Escrava Isaura como novela na TV, ou no PC; a “Os Miseráveis” no cinema, mas têm mais medo das bibliotecas do que o golpista tem do Xandão.
Ano passado, segundo pesquisa, o brasileiro leu em média dois livros e meio ao ano, o canadense (só para uma comparação) degustou 12. 15% dos universitários no Rio de Janeiro nunca leram um livro sequer. A maior parte ficou, certamente, ligada nos smartphones, nos TikTok e Kwai da vida. Acreditam os jovens que todo saber está guardado no Google, a espera de um simples toque com o indicador . Nem mesmo o e-book, que pensou-se traria um alento novo à leitura, teve o poder de mudar essa realidade, representa apenas 7% do mercado de livros no país. Entre 2015 e 2019 , o Brasil perdeu quase cinco milhões de leitores. Quase metade da população neste período não leu um livro sequer. O maior percentual de queda foi entre aqueles que têm nível superior e a camada mais rica de brasileiros.
A confirmação desta realidade é fácil quando observamos a briga colossal durante os inventários pelos butins de guerra, e o desprezo a que são relegadas as bibliotecas pessoais. É que elas têm um valor que foge à metragem mercantil e à aferição e pesagem das balanças econômicas. Se você reparar bem direitinho, na Bolsa de Valores da modernidade, as únicas ações em alta são dos objetos que têm poder de venda. Amigos, familiares, colegas de trabalhos valem exatamente o quanto pesam na conta bancária. A moeda do sentimento está em franca baixa na cotação em Casas de Câmbio.
Ama-se o livro para além dessa visão curta e utilitarista das coisas do mundo. E não só porque ele é o depositário da sabedoria. Mas simplesmente porque ele representa um dos únicos antídotos da solidão. Quem lê, alguém já disse, não vive apenas sua vida, mas a de milhares de escritores e zilhões de personagens. Na Bolsa Mercantil os cifrões flutuam com o estresse do Mercado. Na Biblioteca, no entanto, mede-se a vida pela corrente e fluxos de sentimentos. Quem pode dizer quanto vale um poema de Pessoa? Um conto de Maupassant? Um romance de Machado? Muitas vezes uma frase, um verso podem ressignificar toda uma existência. Quando recebemos uma biblioteca como herança fica-nos a certeza de que nos legaram a parte do leão. Optaram pelo efêmero, pelo etéreo e nos ofertaram a joia da coroa: páginas de eternidade.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri