Tinha muita coisa para ver e comprar. Comprava pouco, mas via muito. Aquele lugar era um mexedor de curiosidade, principalmente para quem tem pouca idade e olhos de bisbilhotice. Quase tudo tinha ali é normalmente nos seus devidos lugares. Feijão, prego, pão, chave de fenda, macarrão, balde, carne, caderno, banana, lâmpada, bombom, boneca, ração, veneno, remédio, fechadura e uma lista de coisas que não caberiam nas páginas da bíblia. Isso era apenas uma bodega ou uma mercearia? Prefiro chamar bodega mesmo e não é por acaso. Bodega é como você chama seu amigo, pelo nome, pelo apelido ou pela forma diminutiva, quando a gente chama amigo de amigo é como o chamasse de mercearia, algo distante e com cheiro de flor de plástico.
Para quem tempo pouca idade e olhos de bisbilhotice, bodega nunca é só bodega. É um tipo de escolinha: você entra e aprende algumas coisas. Por exemplo, você começa a descobrir se a sua moeda pode ser trocada por um bombom e por uma pipoca. Começa também a descobrir e diferenciar o nome das coisas. É possível até aprender sobre arte, com as formas, cores e combinações que estão nos produtos e nas embalagens. A gente aprender até ler de tanto olhar e ouvir.
Na bodega, parece que todo mundo é uma família ou que ela é um jornal. A gente fica sabendo do que acontece no lugar e na vida de cada um, não tem segredo guardado. Bodega é lugar de fofoca mesmo, nem adianta encontrar palavras para confundir o entendimento.
Agora imagina, aproveitar a bodega, que junta coisa, junta gente, junta memória, junta fofoca e ainda pode juntar mais coisa.
Bem ali, que pode ser bem pertinho de você e que também pode ser ali, onde as pessoas se separam por uma linha ou um arranha-céu, aqueles prédios que de tão altos a gente jura que eles querem encontrar com as nuvens.
As bodegas do bem ali podem estar em qualquer canto. Conheço algumas, juntam muitas coisas, mas que coisas. Elas têm caixinhas de zinco perduradas na parede e sempre ficam na altura das mãos daqueles que tendo pouca idade e olhos de bisbilhotice. Dentro delas têm mundos. Dizem que os livros carregam mundos, acredito que sim, quem escreve, sempre junta histórias de mundos já existentes, talvez tenha apenas o trabalho de juntar e recontar de forma diferente, nunca do mesmo jeito. Quem escreve sempre se apega ao que já existe no mundo.
Sei que nestas bodegas, os que têm pouca idade e olhos de bisbilhotice levam para casa outros mundos e depois devolvem, às vezes esquecem de devolver, isso não importa. O importante mesmo é cada imagem, palavra e descoberta, é uma nova forma de olhar o mundo.
O bodegueiro, esse já não é só bodegueiro, nas bodegas do bem ali, eles se transformam, já sabe quem lê, quais os livros mais procurados, quantos são lidos por dia e quantas pessoas procuram descobrir os novos mundos, ah, são também pedintes de livros, de tempo em tempo suas caixas de zinco, renovam os seus mundos. Seriam eles uma espécie de bibliotecários? Talvez esse fosse o sonho, encantadores de livros em todo canto.
Com quantos mundos se fazem uma biblioteca? Nem imagino. Só sei, que não se compra só bombons em uma bodega.
Por Alexandre Lucas. Pedagogo, integrante do Coletivo Camaradas e presidente do Conselho Municipal de Políticas Culturais do Crato/CE
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri