O sargento Uglino Penalva assumiu a delegacia de Matozinho, com ares de quem carregava galão de Marechal. Com ele nem carecia vara e toga de juiz. Uglino facilitara as coisas: investigava, prendia e estabelecia as penalidades do seu Código Penal particular que iam de corretivos de palmatória e de chicote, até à pena de morte. Como as garras da lei, tal e qual a jararaca de Galeano, só picam os descalçados, a Constituição Ugliana foi tolerada de bom grado. Os mais remediados da cidade acataram, sem maiores dissabores, as ações de Uglino. Muitas vezes, inclusive, o contrataram à parte, para resolver alguma pendenga que necessitasse de força de cassetete ou de chumbo. O sargento, assim, transitava em Matozinho com galhardia, folgado como drops em boca de banguela. Aos poucos, no entanto, com tanta liberdade, Uglino começou a se soltar. Passou a colecionar armas e munição. Levantou o queixo, engrossou a titela e ficou mais intransigente. Morando na fronteira com Bertioga, numa casa que ocupava um pequeno terreno, milagrosamente, suas cercas tornaram-se nômades. Aos poucos foi invadindo terras de pequenos fazendeiros locais, sem que os proprietários tivessem a coragem de reclamar por seus direitos. Ricaldino, um roceiro mais esquentado, resolveu não engolir seco a cerca andarilha de Penalva. Sabe-se lá como, simplesmente desapareceu, na calada da noite, e a delegacia ao registrar a queixa de desaparecido informou, depois, que ele se encontrava morando, agora, na capital. Devagarzinho, um minifúndio começou a tomar proporções de latifúndio.
O grande problema é que, um dia, as terras de Penalva começaram a invadir as do Coronel Sinfrônio Arnaud, um dos mais abastados fazendeiros locais. O coronel saltou das suas tamancas e partiu para resolver tudo, com trabuco na cintura, na delegacia. Uglino não se fez de rogado e ciscou de lá que aquela franja de terreno lhe pertencia de muito tempo. Sinfrônio latiu de lá, escritura na mão, que era sua propriedade, por força e direito, desde seu bisavô que ali chegara há mais de cem anos. O coronel omitiu , apenas, um detalhe sobre o primeiro Arnaud ali estabelecido. Invadira terras pertencentes aos índios Tupinaés e os dizimara.
A coisa pegou fogo. Um arranca-rabo sem solução. Sinfrônio retornou à fazenda Jerimum Caboclo e armou todos os moradores que, episodicamente, sem transformavam em jagunços. Eram mais de cem cabras, todos de rifle papo amarelo na mão. Uglino arregimentou uns três soldados rasos e resolveu tomar de conta da sua pretensa propriedade. Matozinho ficou em pé de guerra.
Era uma querela que não se via desde os tempos em que Lampião se acercava de Matozinho, fugindo dos macacos. Pequenos donos de nesgas de terra nas proximidades dos terrenos de Arnaud e Uglino, inevitavelmente, resolveram tomar partido, engrossando este ou aquele exército. O certo é que — ameaça daqui, chantagem dali – o pau comeu no centro. Os jagunços de Sinfrônio invadiram, com facilidade, a terra em questão, derrubaram cerca e refizeram a antiga fronteira. Continuaram, mesmo assim, as ameaças de parte a parte. A maioria dos pequenos produtores protestou veementemente contra a invasão de Arnaud, fez zoada na Câmara e até uma passeata em apoio ao delegado.
O clima continuava tenso e uma onda de fofocas e disse-me-disse tomou conta do dia a dia da vila. Em protesto, o povo resolveu evitar comprar queijos, leite e legumes da fazenda Jerimum Caboclo. O delegado, por outro lado, temia sojigar demais o coronel, pois sabia do seu poder de fogo. E Arnaud, por sua vez, passou a se incomodar com a baixa no comércio dos seus produtos. Um belo dia, sabe-se lá como e com que iniciativa, os dois contendores se reuniram, na caladas da noite, para um armistício. Nos dias seguintes, sem quaisquer explicações, os cabras de Sinfrônio e os soldados de Uglino expulsaram todos os pequenos agricultores que tinham terras nas proximidades. Depois, abraçados, dividiram o butim, meio a meio. Estava resolvida a questão, para o bem de todos, segundo eles, e a felicidade geral de Matozinho.
Até fizeram um desfile dos exércitos no final de semana, abraçados, olhos lacrimejantes, Uglino e Sinfrônio louvaram o desapego de ambos e o alto espírito democrático do pacato povo de Matozinho.
Os novos Sem-Terra ficaram apenas com uma frase dita por Jojó Fubuia, quando saia do bar, vendo-os desalojados com a família e os trapos, na beira da rodagem de Bertioga:
— Aprendam ! Em briga de pedra, garrafa não entra!
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC)
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri