Quando era criança, Chico queria estudar e não pode. Era nos tempos dos coronéis e seu pai era apontador de trabalhador de eito, embora ganhasse um pouco melhor que seus compadres do eito, ainda era pouco, já que sua família era numerosa, então precisava do auxílio dos filhos na lida, ora na limpa de cana do coronel Pinho, ora na pequena tarefa de terra da vazante. A única escola que havia pras crianças daquela comunidade ficava na Vila mais próxima, mas poucas crianças dali iam. Os filhos eram onze, cinco meninos e seis meninas. Só por esta razão nobre, Chico de Avelina não pode frequentar essa única escola que havia nas proximidades, cerca de légua e meia. Mas o menino tinha um sonho: aprender a ler, e tanto aperreou o pai, que este, escondido do patrão, pediu à filha caçula do coronel que por caridade, ensinasse as letrinhas ao seu filho Chico.
Era uma menina ainda, tinha 13 anos e romanticamente não viu naquele pedido nada além de um simples sonho que poderia realizar, e a partir daquele dia, sempre nos fins de tarde após a jornada dos trabalhadores de seu pai, enquanto a maioria se reunia no terreiro para que o pai de Chico registrasse em seu caderno a diária de cada um deles, o menino Chico ia para o fim da calçada da casa grande onde a pequena Assunção já com a cartilha do professor Felisberto de Carvalho se preparava para suas primeiras aulas.
Cinco encontros se deram sem que o coronel desse conta. Mas bastou ver uma única vez, para indagar da menina, qual a razão para aquela escola improvisada. “Pra quê filho de peão saber ler? Depois fica preguiçoso e pega o tempo que deveria tá na roça e vai ficar lendo porqueira de livro.” Nisso, acabou ralhando foi com o Chico, coitado. O pequeno viu naquela atitude, uma ameaça à realização de seu sonho. Assunção por sua vez, nem ligou. Apenas chegou para o menino Francisco e disse que daria um jeito, nem que fosse escondida do pai. E assim fez. As aulas continuaram e pouco mais de dois meses, o pequeno Francisco já lia e escrevia tudo.
Já era meado o terceiro mês daquelas aulas às escondidas quando o pequeno Chico com a sua jovem professora foi pego em flagrante delito na leitura. O coronel lhe falou as do fim: “quem já se viu, filho de peão querer aprender a ler. Vai limpar a cana, menino, que tem mais futuro!” Francisco no entanto não queria dá ouvidos, mas teve que acatar o fim das aulas já que o coronel ameaçara a filha de manda-la estudar no Recife, ameaçou e cumpriu, a menina só voltou de lá formada. Virou doutora Assunção e nem de longe lembrava aquela garotinha simpática e empática ao sonho do menino Francisco.
Depois da proibição, como ninguém empata o vento de soprar, uma vez iniciado na leitura o pequeno Chico enveredou em busca de mais, e passou a ler tudo quanto chegasse a seu alcance, desde a realidade em que estava inserido ele e sua família, passando pelo noticiário no rádio, e dando cabo de qualquer cordel que lhe chegasse às mãos quando ia à feria com seu pai, e assim seguiu os dias.
Os anos se passaram e já eram outros, já não mais havia coronéis, mas os seus herdeiros, que conduziam o latifúndio com a mesma habilidade maquiavélica; os trabalhadores daquela época, muitos sucumbiram ao tempo, outros ainda viviam a sentença da velhice de quem doou toda a vida para a manutenção do poder de um coronel. O pai de Chico estava entre os primeiros, aos filhos, deixou a herança do eito, não na cana de açúcar, os engenhos há muito não produziam, o negócio agora era a criação de gado, os canaviais deram lugar ao pasto, o engenho à forrageira.
Ainda nesse tempo, os irmãos de Chico arribaram, não quiseram seguir a sina do pai. Estranhamente, Chico ficou. E foi lhe delegada a função de apontador, como seu pai. Casado, os filhos foram chegando ano após ano, num total de nove, cinco homens, quatro mulheres. A pequena escola rural já havia sido instalada na vila e à medida que iam completando a idade escolar Chico e sua esposa os mandavam para a escola.
Essa atitude despertou nos patrões de Chico uma estranheza, e não demorou para as piadinhas aparecerem, “os filhos de Chico vão ser doutor!” o patrão dizia isso na frente da peãozada, e isso desencadeava uma gargalhada coletiva. Inicialmente Chico ignorava, mas a recorrência foi tanta que ele se viu na necessidade de esclarecer algumas coisas. Com a sua calma costumeira, falou do quanto a leitura mudara sua vida. Mesmo não tendo a oportunidade da escola, o pouco que aprendera, fez com que ele ampliasse a visão. Explanou sobre Camões a quem os demais chamavam Camonjo, falou sobre Patativa do Assaré, Luiz Gama; o rábula; Jorge Amado, Machado de Assis, Lima Barreto, Carolina de Jesus, e tantos outros com quem manteve contato através da leitura, falou sobre que tinha de especial neles e os tornava mais importantes era o fato de todos serem de origem humilde e todos eles terem se tornado o que foram através da leitura. Foram palavras ao vento para o patrão, para os trabalhadores, aquelas palavras causaram um incômodo que se reverberou em suas casas.
Nos anos seguintes a rotina daquela comunidade foi alterada por um movimento pendular matinal, aquela ruma de criança indo à escola, que obviamente, fora ampliada dado o aumento das matrículas. Nunca mais aquela comunidade foi a mesma. Desde então, todas as crianças terminavam o primeiro grau menor, e iam até à cidade em busca das escolas de primeiro grau maior, depois segundo grau. Muitos se formaram, outros não. Todos se transformaram em leitores e transformaram suas vidas. Vale ressaltar que dos nove filhos de Francisco, oito ingressaram na Universidade, seis se formaram e fizeram pós, duas fizeram mestrados, uma fez doutorado, e todos lutam pela educação aonde quer que estejam, os netos de Francisco vão seguindo o mesmo itinerário. A comunidade em torno daquele velho engenho nunca mais foi a mesma. Porque Francisco, Chico de Avelina, um dia quis aprender a ler.
Por Francinaldo Dias. Professor, cronista, flamenguista, contador de “causos” e poeta
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