Aos poucos, a imagem que vejo refletida no espelho mais e mais se assemelha com a sua. Talvez porque você tenha ficado com um ar ainda juvenil na foto pendurada na parede, como se posando para cliques futuros que não mais se revelariam. Seu sorriso agora parece pender dos meus lábios e até aquele ar resignado e tranquilo de que tudo acontece porque já estava previsto acontecer. O reflexo no espelho está cada vez mais parecido com o retrato do álbum que esmaeceu sob o poder dos influxos do tempo. Percebo, mais que nunca: herdei muitos daqueles traços físicos e de personalísticos com os quais convivi e, alguns, até abominei. A profundidade do olhar, a perda do brilho faiscante das pupilas, o desapego aos tesouros materiais que incandescem os meninos de hoje. Cada vez, também, te sinto mais presente nos meus gestos, nas minhas tiradas de humor, no andar, num hábito de gemer após cada bocejo, nos pitocos de unhas roídas e até nos mínimos toques de mãos.
Só não me ficou aquele amor telúrico seu pelo mato. Como um teju apegado ao sertão o que fez com que você aos poucos se mimetizasse com a folhagem ressequida e as agruras e rachaduras do chão. Mas te percebo vivo em mim no meu sossego, no meu recolhimento meio monástico e no prazer que emana dos textos e dos poemas que me escorregam pelos olhos.
Tento fugir da memória cruciante da tua partida, quando a vida, aos poucos, desceu em correnteza rumo à foz. E ali estávamos nós, totalmente incapazes de mudar o curso das águas. Fixo o pensamento nos dias tranquilos de calmaria, quando boiávamos no fluxo do rio, sem baronesas e sem marolas. A paisagem ao redor nos enebriava, as nuvens, no alto, desenhavam figuras oníricas e espumosas e a travessia até parecia ir para um porto seguro. Nada predizia as cascatas e corredeiras que armavam bote logo à frente.
Hoje, olho meus filhos e netos e vejo que tudo se repete, como num moto-contínuo. O rio nunca mais é o mesmo, mas o seu fluxo é permanente e imutável. No fundo, nada muda, apenas a correnteza flui.
Um dia o espelho estilhaçou, para nosso espanto. Tua imagem, pai, já não é uma, mas multiplicou-se e brilha em cada um dos pedacinhos como novas estrelas e novos sóis. Cada fragmento carrega consigo um facho da luz primal do espelho original. Daqui a pouco os meninos estarão brincando em algazarra aqui no oitão de casa, você estará com ar juvenil na foto da parede, mas há um estilhaço seu refulgindo em cada cantinho de nós.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor. Membro do Instituto Cultural do Cariri (ICC). Agraciado com a Medalha do Mérito Bárbara de Alencar
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri