Nestes dias, as redes sociais do país se viram tomadas por uma polêmica inusitada. Foi um abraço a causa de toda a celeuma que pareceu mais revoltante para um segmento da população que o beijo de Judas. O professor e médico Dráuzio Varela , num programa de televisão, mostrou as precárias condições por que passam transexuais, ali pagando pena em presídios masculinos. No fim da reportagem, emocionado com a solidão de uma trans chamada Suzy, Dráuzio deu-lhe um abraço carinhoso, aquele mesmo que lhe vinha sendo negado , por muitos e muitos anos, por familiares e amigos. Os empedernidos combatentes dos direitos humanos postaram-se, rapidamente, em confronto com o Dr. Dráuzio, divulgando o crime hediondo que tinha levado a Suzy à prisão: estupro seguido de morte. Sempre é bom lembrar que o Dr. Dráuzio há mais de trinta anos presta assistência médica em presídios de São Paulo, ato este do mais puro voluntariado.
Recuso-me a comentar o ódio de cachorro hidrofóbico que tomou conta de uma parcela da população. Não há possibilidade de se discutir racionalmente com hienas e aves de rapina. Entendo, perfeitamente, que a família da vítima venha a se sentir, de alguma maneira, desapontada pela solidariedade prestada ao algoz de um ente querido seu. Qualquer um de nós, colocado no mesmo divã, dificilmente teria uma atitude diversa. Acontece que a Suzy ali está presa há vários anos, pagando pelo crime cometido. Diferentemente de tantos e tantos criminosos de colarinho branco totalmente imunes à lei e blindados convenientemente pela justiça e por muitos políticos de plantão. A justiça, por sua vez, existe não como um instrumento de vingança , mas como um veículo de autuação a um ilícito cometido, com o cerceamento de liberdade e carrega consigo a responsabilidade do estado e a possibilidade reformadora implícita.
Por outro lado, sempre é bom lembrar (e o Dr. Dráuzio frisou isso em nota) que, como médico, não lhe cabe fazer julgamento de atitudes ou comportamentos. Cabe-nos a responsabilidade de tratar igualmente Jesus ou Hitler, com o mesmo cuidado , a mesma destreza e o mesmo carinho. Na mesa de cirurgia, o meu bisturi deve ter a mesma perícia e delicadeza operando o assaltado ou o assaltante. O julgamento devo deixar a Deus e aos tribunais. Quem não tiver esse discernimento, não deve procurar exercer Medicina, pois, por mais estudo e empenho e perícia que possa ter, jamais poderá dizer-se médico. Poderá ter toda a Ciência do mundo , mas lhe faltará a Arte.
Mas os cães raivosos não se conformam. Eles mesmos que defendem , abertamente, torturadores, crimes ambientais, massacre de indígenas e gays, queima de arquivos de milicianos, extermínio puro e simples de inimigos políticos, morte da ditadura e outras pautas pré-medievais, revoltam-se e destilam veneno ante um ato carinhoso de um repórter. Depois, curvam-se diante dos altares e dos pastores, na certeza de que são detentores de todas as poltronas do paraíso.
Hoje, que os outros abraços terminam sendo proibidos pelo Covid-19, é sempre bom refletir que há mais cristianismo no ato do ateu Dráuzio Varela do que no ranço tradicionalista e cheio de mofo dos que apontam com dedos sujos, engatilham coldres e pregam o “Armai-nos uns aos outros”.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
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