“Eu não dei por esta mudança,
Tão simples, tão certa, tão fácil:
— Em que espelho ficou perdida
a minha face?”
Cecília Meirelles
Uma fotografia antiga, dessas arrancadas, milimetricamente, do fundo do baú. Por quantos anos, como um urso polar, terá hibernado no seu iglu, até que os rigores invernais do tempo tenham dado os sinais da mudança de estação? A mocinha , dizem-me, teria catorze anos, mas carrega consigo um pueril ar angelical de um tempo em que a criancice não tinha pressa e o tempo arrastava-se com a tranquilidade e malemolência de um lagarto mal escapado do seu casulo. A sensualidade homiziava-se ainda nos véus da infância. Na cabecinha um chapeuzinho coco com um diadema florido, emoldurando um cabelinho Chanel . Um vestidinho bordado compõe o figurino que dir-se-ia arrancado de um conto de fadas. Uma pulseira envolve, delicadamente, o punho direito que se acalanta com uma corbeille de flores amparada pela outra mão escondida, tímida, em meio às pétalas.
O fundo fosco e inexpressível da foto, com uma cortina mal definida no canto direito, impulsiona-nos o olhar para a imagem central, como se a menininha exercesse à volta o campo gravitacional de um buraco negro. O retrato, em sépia, sabe que ganhou em perenidade o que perdeu no fulgor estonteante da cores furtadas, substituídas por um branco-marrom imune ao caruncho dos anos.
Prende-nos, como um imã, o olhar algo soturno e singelo da mocinha que , obliquamente, fita um ponto distante do horizonte, como se pressentisse a tortuosa estrada que serpenteava à sua frente. Logo mais viria , como para todos, os misteriosos sabores dos frutos da árvore do bem e do mal, as espadas flamejantes e a expulsão do paraíso. Como manter a placidez desse olhar edênico nas terras de Gion, a Leste do Éden?
A dona desse olhar conseguiu mantê-lo brilhante e refulgente, como um dia foi flagrada neste clique , no paraíso. Vieram as tempestades, os invernos rigorosos, os desfolhamentos outonais, as ciclicidades das estações, as sequidões de verão. Para ela, os olhos pintavam-se sempre em primaveras. Entendia dos segredos pendulares da existência. Alegria-tristeza, felicidade-mágoa, feio-bonito, moral-amoral, riso-choro eram apenas o verso e anverso de uma mesma moeda: a vida brincando de Cara-ou-Coroa. O anjo que um dia viu-se expulso do éden recusou-se a retirar as asas e, com elas, abanou almas asfixiadas, protegeu espíritos das intempéries e, mais que tudo, ensinou os enigmas do voo a todos que se viam, inflexivelmente, presos à terra.
Um dia, a foto tombou no fundo do baú, soterrada pelas camadas sedimentares do tempo. Como uma pupa, roubou a dormência dos casulos. Nestes dias, a larva fez-se novamente borboleta. O olhar inquisidor e suave da mocinha voltar a mirar o horizonte, reflete em todos as mesmas cintilações de resiliência, de paz e de asas.
Por J. Flávio Vieira, médico e escritor
*Este texto é de inteira responsabilidade do autor e não reflete, necessariamente, a opinião do Revista Cariri