Acordar, pisar no chão do quarto e amanhecer torcendo por um dia tranquilo é realidade privilegiada de muitos fortalezenses – e sonho distante para outros tantos. O primeiro contato dos pés da aposentada Zulene Pereira, 69, por exemplo, é com a água fétida da fossa. Dentro de casa, em todos os cômodos. A falta de acesso à rede de esgotamento sanitário ainda afeta cerca de 38% dos domicílios de Fortaleza, segundo a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) – enquanto isso, o investimento do Governo Federal ao Estado para saneamento caiu, de 2018 para 2019.
Entre janeiro e outubro do ano passado, foram transferidos R$ 73.289.611 da União ao Estado para saneamento. Em igual período deste ano, o valor dos repasses reduziu-se consideravelmente, totalizando apenas R$ 27.367.465 – uma queda de 62,6%. Os números estão disponíveis no Portal da Transparência do Governo Federal e foram obtidos pelo Núcleo de Dados do Sistema Verdes Mares.
Conforme o levantamento, o Governo Federal destinou oito repasses a localidades cearenses, nos dez primeiros meses do ano passado, incluindo Fortaleza – a que recebeu menor quantidade de recursos, cerca de R$ 29 mil. O município com maior quantidade de investimento federal foi Camocim, no norte do Estado, com R$ 24,9 milhões recebidos; seguido por Quixeramobim, com R$ 2,9 milhões; e Crato, com R$ 2,8 milhões. Entram na lista, ainda, as cidades de Sobral (R$ 2 milhões), Icó (R$ 1,4 milhão) e Chorozinho (R$ 933 mil). Ao ente “Estado do Ceará”, foram R$ 16,5 milhões, fechando a conta de 2018 até outubro.
Já de janeiro a outubro de 2019, a capital cearense não aparece na lista de distribuição dos R$ 27,3 milhões, feita também em oito repasses. A Camocim, neste ano, foram destinados R$ 4,7 milhões; a Quixeramobim, R$ 4,3 mi; e a Sobral, R$ 1 mi. Fora das cifras milionárias, aparecem Chorozinho, com quase R$ 335 mil recebidos; São Gonçalo do Amarante, com R$ 283 mil; Juazeiro do Norte, que recebeu R$ 93 mil; e Icó, com pouco mais de R$ 34 mil. O Governo do Estado, por sua vez, recebeu R$ 16,5 milhões até outubro deste ano.
Deficiências
Quando as cifras não chegam ao solo concreto, sobram deficiências como as enfrentadas diariamente pela saúde de Zulene e dos netos de seis, oito e nove anos de idade, que “vivem com febre e vomitando”. “Não quero eles pisando no campo de jeito nenhum, porque é pior. Eles ficam levando sol, chegam em casa e tem o mau cheiro e o meladeiro. Pioram! Aqui a gente já se levanta com o pé na lama”, descreve, mencionando o único lazer que os meninos têm na Comunidade Santa Rita, no Barroso, Regional VI de Fortaleza: o campo sem gramado.
No período de chuva, a água não pede licença para entrar e alagar a casa da aposentada, situação semelhante à vivenciada por Francisca Raiane Costa, 22, e pela mãe.
“De dois anos pra cá, desandou. Começou saindo um pouquinho d’água e a gente limpava. Quando fomos ver, chegou na sala e a gente ficou sufocada com a catinga de esgoto. Não temos condições de ajeitar nem alugar outra casa, temos que enfrentar o sufoco”, lamenta Raiane. Ela e a mãe ainda amargam as sequelas da chikungunya.
Doenças
As arboviroses são apenas algumas das diversas doenças às quais populações de regiões sem esgotamento sanitário estão expostas, como aponta o professor do Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Federal do Ceará (UFC), Luciano Pamplona. “Há muitas verminoses importantes e doenças de pele que acabam acometendo essas pessoas. As crianças brincam, jogam bola nessas áreas, adoecem e têm o crescimento prejudicado. Esgotamento sanitário se relaciona, inclusive, com índices de mortalidade infantil”, avalia o especialista.
O pesquisador alerta ainda para a realidade atrás dos números oficiais. De acordo com a Cagece, as coberturas de água e esgoto em Fortaleza são de 98,6% e 62,1%, respectivamente – mas, como aponta Luciano, as falhas de distribuição influenciam na saúde coletiva. “Mesmo nos locais onde as pessoas têm água, não têm o dia todo, então precisam armazenar. Certamente, temos doenças muito influenciadas por essa carência”.
Para o especialista, investir em saneamento básico – que inclui acesso à água, rede de esgoto e coleta de lixo – é “caro e trabalhoso”, porém “uma das mais eficazes medidas de prevenção” contra doenças. “Em Fortaleza, várias áreas têm saneamento básico estruturado, mas as redes das casas não estão ligadas. É um problema crônico. É preciso educar as pessoas sobre a importância do saneamento”, destaca Luciano Pamplona.
Financiamento
O coordenador de obras de infraestrutura do Município, Guilherme Gouveia, reconhece o problema, e afirma que a Prefeitura de Fortaleza tem mapeado os pontos da cidade com maior necessidade do sistema para facilitar a ligação. “Estudamos os IDHs (Índices de Desenvolvimento Humano) para selecionar as áreas. Onde são mais baixos, estamos desenvolvendo projetos para melhorar a qualidade de vida das pessoas”, garante.
Um deles integra o Programa Mais Ação, que visa implantar rede de drenagem, esgoto e pavimentação em áreas precárias. De acordo com o prefeito Roberto Cláudio, as medidas pretendem compensar uma deficiência histórica. “Nós temos, principalmente no sul da cidade, áreas que cresceram sem nenhum planejamento, ao longo dos últimos 25 anos. As casas foram construídas, mas os serviços não chegaram”, pontua o gestor, ao explicar que o dinheiro gasto na área vem de financiamento internacional.
Na manhã dessa quarta-feira (27), o prefeito assinou ordem de serviço para obras no bairro Jangurussu, na Regional VI da Capital. Somente lá, serão aplicados cerca de R$ 12,6 milhões em requalificação de 60 ruas e implantação de rede de saneamento básico “nos trechos onde há ausência de esgotamento sanitário” – investimento que tem o dever de sanar uma chaga social e econômica de moradores locais.
A dona de casa Miriam de Sousa vive no bairro há 35 dos 65 anos de vida, assistindo à água suja na frente da casa. “Pagamos R$ 150 pra desentupir uma fossa. Pra quem ganha um salário mínimo, é puxado. Durante o ano, a fossa, que é pequena, entope”, relata, listando os vários transtornos de conviver com a falta do básico. “Estamos entregues às baratas, ratos, catitas e até escorpiões. Onde não tem esgoto, não tem nada. Uma lama dessa faz mal pra mim, para as crianças, pra tudo”, conclui. As obras por lá devem ser concluídas em até 24 meses, conforme a Prefeitura.
Questionado sobre os critérios para estabelecer os valores dos repasses a estados e municípios, o acompanhamento da política de saneamento nas regiões e sobre a previsão de investimentos para 2020, o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) não enviou resposta até o fechamento desta edição. A reportagem também solicitou fonte da Cagece para comentar sobre os possíveis impactos da redução nos investimentos federais, mas não obteve retorno.
Fonte: Diário do Nordeste