“AK-47”. Foi o que o executivo Ron Temko, de 69 anos, escreveu em um bilhete. Ele estava internado há três semanas na UTI do hospital da Universidade da Califórnia, em São Francisco, com um caso grave de Covid-19 – e não conseguia falar porque estava conectado a um respirador. Temko não foi completamente sedado: os médicos o mantinham acordado algumas horas por dia. Depois de mostrar o bilhete para a família por videoconferência, Temko apontou para a própria nuca indicando onde o tiro de AK-47 deveria ser dado. Ele queria morrer, mas não porque estivesse com dor. Era pior. Achava que tinha sido raptado e era parte de uma experiência horrenda: enxergava, na sala da UTI, uma cabeça humana viva que girava – na qual médicos e enfermeiros periodicamente inseriam pregos.
A americana Kim Victory, de 31 anos, teve alucinações igualmente bizarras durante seus dois meses de internação para tratar do coronavírus. Numa delas, estava sendo queimada viva na cama da UTI, até que era resgatada por alguém – que a transformava numa escultura de gelo, instalada no bufê de um navio. Anatolio José Rios, de 57 anos, ficou apenas quatro dias intubado no Hospital Geral de Massachusetts. Quando foi tirado do respirador, as alucinações começaram: ele enxergou pessoas mortas no chão, uma espécie de mulher vampiro circulando pela UTI e homens armados na porta da sala.
Não é incomum que pacientes em estado grave, ou que passem muito tempo na UTI, venham a ter alucinações. Mas esses três relatos, concedidos pelos três pacientes ao jornal New York Times, ilustram um lado pouco explorado da Covid-19: os sintomas neurológicos. Um estudo recém-publicado por 56 médicos de vários hospitais ingleses relata o aumento de casos neurológicos relacionados à Covid-19 – incluindo a encefalomielite disseminada aguda (ADEM), uma doença rara que tem se manifestado com mais frequência em pacientes infectados pelo novo coronavírus.
Ela é uma inflamação do cérebro causada por infecções virais, que normalmente acomete crianças pequenas e pode deixar sequelas permanentes. No hospital da University College London, onde trabalha a maioria dos autores do estudo, a média de casos era um por mês – mas subiu para 2 ou 3 por semana com a pandemia. O trabalho relata mais de 40 casos de inflamação cerebral e/ou disfunções neurológicas causadas pelo Sars-CoV-2.
Um deles é a história de uma mulher de 55 anos, sem histórico de doenças psiquiátricas, que foi internada com Covid-19 leve. Ela teve alta três dias depois e foi para casa. Então começou a agir de forma compulsiva, colocando e tirando seu casaco sem parar – e disse que estava vendo macacos e leões dentro de casa. Foi levada de volta para o hospital, onde teve de ser tratada com medicamentos antipsicóticos.
O estudo também relata o caso de uma mulher de 47 anos, que chegou ao hospital com tosse, febre, dor de cabeça e fraqueza no lado esquerdo do corpo. Estava com Covid-19 e foi internada. Uma tomografia do cérebro revelou que ela havia desenvolvido ADEM, que não foi controlada com remédios – a paciente teve de ser submetida a uma craniectomia, ou seja, a realização de uma abertura na caixa craniana para aliviar a pressão sobre o cérebro inflamado e inchado.
Fonte: Superinteressante