Isolamento social, dia 100. Após participar da vigésima videoconferência na semana, tirar outra selfie com o gato e contar os pães artesanais que se acumulam na geladeira, você sente que nunca esteve tão cansado. E o que aperta, agora, não é apenas o cansaço físico, acumulado graças ao trabalho ou as tarefas domésticas. Mas, também, o cansaço da quarentena.
Os sintomas começam a se acumular. O número de vezes que você lavou a mão caiu exponencialmente nos últimos dias. Você já não limpa as sacolas do delivery com tanto afinco, e já perdeu o ímpeto de esfregar cada centímetro das verduras e legumes que adquiriu no mercado. O bom e velho frasco de álcool em gel, antes renovado a cada semana, agora é usado apenas em ocasiões especiais.
Eis que, então, uma ideia surge na sua mente. Por que não sair de casa para uma inofensiva volta de bicicleta ao redor do quarteirão? Afinal, quais as chances de que alguém contaminado espirre perto de você justamente durante o passeio? Além do mais, você não vê a luz do Sol há tanto tempo e, convenhamos, faz um dia tão bonito lá fora…
Qualquer visita minimamente desnecessária ao mundo real, há algumas semanas, causaria repulsa. Mas, agora, o perigo de ignorar protocolos de segurança e contrair um vírus potencialmente mortal – e que já infectou quase 1,3 milhão de pessoas e causou 56 mil óbitos – parece menor, sem nenhum motivo aparente. Teria o brasileiro médio simplesmente “se cansado” da quarentena? É mais ou menos isso. E a ciência explica por quê.
Vencidos pelo cansaço
Se você, leitor, se identificou com a situação descrita nos primeiros parágrafos é porque está sofrendo do que a psicologia convencionou chamar “fadiga da quarentena”.
Não estamos falando aqui daqueles quarentenados mais conspiracionistas, que nunca acreditaram na quarentena – ou, ainda, dos que precisaram sair de suas casas por motivos de trabalho.
“Quarentenados fatigados” têm consciência de que a postura de burlar o isolamento social é errada – e pode prolongar ainda a pandemia de Covid-19. Essa sensação, porém, persiste por um motivo simples: o corpo não consegue se manter em alerta por três meses seguidos.
Para entender por quê, é preciso saber, primeiro, como cada estímulo é interpretado pela nossa central de comando. A amígdala, região do cérebro que detecta o medo, fica ativada quando vemos ou ouvimos uma potencial ameaça – como algum fato novo sobre a pandemia, por exemplo.
Quando o cérebro percebe uma ameaça, a sensação de medo se espalha pelo corpo graças ao trabalho conjunto do cortisol, hormônio de estresse, e a atuação do sistema nervoso simpático.
Nesse instante, é ativada a chamada reação de fuga ou luta. Ela existe para que nosso corpo entenda de bate pronto alguma situação de ameaça, e dê uma resposta rápida o suficiente para livrar nossa pele. Como quando um animal está prestes a atacar e você precisa fugir no intervalo de um instante – ou encarar uma luta corporal com ele.
A reação de fuga ou luta deveria ser algo temporário, que se mantém apenas tempo suficiente para você se safar de uma enrascada. Não por semanas a fio. Os mecanismos de reação, assim, tendem a falhar com o tempo. E o que antes era uma ameaça gigante, depois de um tempo, passa a não ameaçar tanto assim.
É o mesmo motivo pelo qual você para de tomar um remédio antes do fim do tratamento porque já se sente melhor, em vez de cumprir o tratamento inteiro. Por conviver tanto tempo com algo que antes te abominava (o fato de estar doente), o problema agora parece menor do que de fato é – o suficiente para que você se torne mais displicente.
Essa é uma reação natural do corpo, e serve como uma estratégia de autopreservação. Manter altos níveis de cortisol por tempo demais, afinal, pode causar impactos negativos na saúde – como ansiedade ou estresse. Esses sintomas, segundo a ciência, também podem alterar nossa capacidade de julgar algo como bom ou ruim. É nesse momento que uma visitinha ao salão de beleza parece uma ideia mais razoável do que nunca.
“A pandemia de Covid-19 amplificou nossos medos, uma vez que percebemos que o futuro é incerto. Quando vivemos a incerteza, qualquer previsão se torna imprecisa. Assim, acabamos subestimando ou ignorando ameaças e nos recusando a aceitar rotinas e metas. A incerteza ou medo minam nossos esforços em tomar boas decisões”, explica Jacqueline Gollan, professora de psiquiatria da Northwestern University, nos Estados Unidos, em comunicado.
De onda em onda
No início da pandemia, a sociedade tentava se adaptar para um possível aumento exponencial da doença. Achatar a curva era prioridade, saber o número de leitos, hospitais de campanha e profissionais de saúde. Não se sabia direito o quão contagioso o vírus era, em que ritmo iria se espalhar, a necessidade de usar máscara ou não, quanto tempo o vírus sobrevivia no ar ou em superfícies… Por isso, a preocupação de todos tendia a ser maior.
Conhecer melhor o comportamento do vírus, no entanto, acabou nos tornando mais permissivos. A medida que vamos ganhando instrumentos sobre como controlar a doença, esse senso de urgência acaba mudando de patamar. Isso tudo faz com que fiquemos, aos poucos, mais coniventes e permissivos.
Há também, aí, uma questão de perspectiva: quando é difícil ver os benefícios imediatos de uma determinada ação, acaba sendo, por tabela, mais difícil reconhecer o quão importantes elas são. O custo de ficar em casa trancafiado, afinal, é imediato. Os benefícios de levar a quarentena a sério, porém, só aparecerão a longo prazo, quando o número de mortos cair daqui duas semanas.
Essa sensação acaba se agravando para quem vive em cidades menos populosas, ou regiões onde a infecção ainda não espalhou pra valer, por exemplo. Nesses casos, a sensação de urgência é menor: com uma olhada rápida no Instagram, dá pra ver fulano indo fazer uma visitinha aos amigos. Ou ciclano indo à praia. O noticiário mostra prefeitos assumindo os riscos e reabrindo o comércio. Com tudo conspirando contra, a sensação de que manter o protocolo de segurança iniciado meses atrás não passa de perda de tempo.
O fato é que, apesar de o tempo levar à descrença do isolamento social, ele segue sendo a principal forma de evitar situações de contágio, minimizando o risco de que alguém contraia o novo coronavírus. Países que fizeram lockdown e mantiveram a população em casa, agora, se preocupam em controlar a chamada “segunda onda” de casos, causada pelo lento retorno à vida normal. Viver a aparente sensação de liberdade de agora, no entanto, pode impedir passemos por isso um dia. Afinal, não dá pra viver uma “segunda onda” se jamais deixarmos a primeira.
Fonte: Superinteressante