No centro da crise internacional e sinalizando uma mudança de posição, o governo brasileiro passou a fazer parte um acordo de compartilhamento de tecnologia e informação para acelerar o desenvolvimento de vacinas e tratamentos contra a Covid-19. Nesta sexta-feira (29), o projeto foi oficialmente lançado, com o objetivo de que o eventual produto seja de acesso de todos e que patentes não se transformem em um obstáculo.
Para o Brasil, apenas o acesso à tecnologia, tratamentos e a eventual vacina permitirá que todos estejam seguros e que se possa voltar à normalidade. O governo tem tido dificuldades para obter respiradores e equipamentos diante da pandemia.
A iniciativa é do governo da Costa Rica, o primeiro a sugerir um acordo quadro para estabelecer regras de transferência de tecnologia e de informação sobre a vacina e tratamentos. O projeto ainda conta com a participação de mais de 30 governos, entre eles o da Noruega, Equador e vários outros países no mundo.
De acordo com fontes no Itamaraty, o Brasil informou o governo da Costa Rica e a OMS na quinta-feira de que fará parte do projeto. A decisão representa uma mudança na postura da diplomacia nacional, que se mantinha distante dos projetos na agência internacional.
A mudança coincide com a constatação de que o Brasil passou a ser o epicentro da pandemia no mundo, com 25% do número de mortes em 24 horas e sendo superado em número de casos apenas pelos EUA. Evidências científicas ainda desmontaram parte da estratégia do governo, cada vez mais criticado internamente e nos meios internacionais.
Em abril, a coluna revelou que uma outra iniciativa global havia sido costurada para garantir o desenvolvimento de uma vacina. Mas o Brasil sequer havia sido informado do projeto. Naquele momento, os europeus lideraram o processo, com um pacote de US$ 8 bilhões.
Procurado na época, o Ministério da Saúde apenas explicou que o Brasil estava considerando outras iniciativas, sem dar detalhes de quais seriam.
Nesta semana, o presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado, Nelsinho Trad, afirmou que esteve com o chanceler Ernesto Araújo e que o diplomata indicou que haveria um encontro ministerial em Brasília para definir a participação do país nos mecanismos internacionais. Um dos temores do senador era de que o Brasil pudesse ficar no final da fila numa eventual distribuição da vacina.
Prioridade e volta à normalidade
Maria Nazareth Farani Azevedo, embaixadora do Brasil na ONU, participou do evento e indicou que o acesso à tecnologia é “prioridade” para o Brasil, ainda mais na situação de uma pandemia.
“Acesso a remédios é chave para construir e fortalecer sistemas de saúde sustentáveis e garantir cobertura global e responder a emergências”, disse a diplomata.
“No caso da Covid-19, acesso universal e equitavel de tecnologia é a única forma de que todos, em todos os lugares, estejam seguros e capaz de voltar à normalidade”, afirmou.
Ela lembrou que o Brasil “liderou” esforços ara implementar estratégias de acesso a remédios e disse estar “confiante de que o chamado (feito nesta sexta-feira) terá impacto e ajudar a enfrentar a crise”.
Momentos depois, foi a vez do presidente do Uruguaia, Luis Lacalle Pou, enviar uma mensagem de dentro de um carro de apoio à iniciativa. Ele explicou que estava indo para uma região com alta transmissão do vírus, “na fronteira com o Brasil”.
De fato, a participação do governo nos fóruns internacionais tem sido alvo de polêmica. Há duas semanas, numa outra reunião da ONU, o chanceler Ernesto Araújo sugeriu o termo “multilateralismo” deixasse de ser usado, já que ele implicaria uma “ideologia”. Para ele, palavras que terminam com “ismo” se referem a uma ideologia.
Araújo aposta numa nova ordem internacional, no momento pós-pandemia, construído a partir de cinco ou seis países. Na reunião ministerial do dia 22 de abril, com Bolsonaro, o chanceler afirmou que estava seguro que o Brasil faria parte dessas novas potências que vão redesenhar o mundo. Nesse projeto, porém, não haveria lugar garantido para a ONU, pelo menos não em seu formato atual.
Na semana passada, o presidente Jair Bolsonaro tampouco participou da Assembleia Mundial da Saúde, espaço ocupado pela Colômbia e Paraguai. Procurado, o Itamaraty não explicou se Bolsonaro foi ou não convidado.
Patentes
Um dos pontos centrais da iniciativa é a de impedir que patentes se transformem em obstáculos para que governos tenham acesso à vacina e tratamento.
Durante o lançamento, o diretor-geral da OMS, Tedros Ghebreyesus, apontou como a ciência tem sido o centro dos esforços da entidade para salvar vidas. Mas questionou: “todos serão beneficiados ou alguns deixados para trás?”.
“As parentes são fundamentais para a inovação. Mas agora é momento de prioridade e esses instrumentos devem ser bens públicos”, defendeu Tedros.
“A ciência nos da soluções. Mas a pandemia nos mostrou a desigualdade”, alertou. Segundo ele, a crise oferece aos países “construir um mundo mais justo e que a saúde não seja um privilégio de alguns”.
Mia Mottley primeira-ministra de Barbados, mandou um duro recado, alertando o “velho Oeste” imperava entre os países mais pobres diante da falta de equipamentos. Agora, o temor é de que o mesmo cenário se repita com a vacina. “Não podemos ter vencedores e perdedores”, disse. Segundo ela, a promessa da democracia e o sistema multilateral não pode ser abandonado.
Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de Economia, defendeu a iniciativa, alertando que patente é um “construção social” e que o projeto visa acelerar a produção. Para ele, quanto mais tempo a pandemia durar, maior será o número de mortes e a “devastação” nas economias.
“O Pool de Acesso à Tecnologia COVID-19 garantirá os mais recentes e melhores benefícios da ciência para toda a humanidade”, disse Carlos Alvarado, presidente da Costa Rica. “Vacinas, testes, diagnósticos, tratamentos e outras ferramentas-chave na resposta ao coronavírus devem ser disponibilizadas universalmente como bens públicos globais”, defendeu.
Além do Brasil, fazem parte da iniciativa a Argentina, Bangladesh, Barbados, Belize, Chile, Equador, Egito, Indonésia, Líbano, Luxemburgo, Malásia, Maldivas, México, Moçambique, Noruega, Omã, Paquistão, Palau, Panamá, Peru, Portugal, São Vicente e Granadinas, África do Sul, Sudão, Holanda, Timor-Leste, Uruguai.
“Solidariedade e colaboração globais são essenciais para superar a COVID-19”, disse o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus. “Com base em uma ciência forte e colaboração aberta, esta plataforma de compartilhamento de informações ajudará a fornecer acesso equitativo às tecnologias que salvam vidas em todo o mundo”.
O projeto proporcionará um balcão único para que o conhecimento científico, os dados e a propriedade intelectual sejam compartilhados de forma equitativa pela comunidade global.
“O objetivo é acelerar a descoberta de vacinas, medicamentos e outras tecnologias através da pesquisa em ciência aberta, e acelerar o desenvolvimento de produtos, mobilizando capacidade adicional de fabricação. Isto ajudará a garantir acesso mais rápido e equitativo aos produtos de saúde COVID-19 existentes e novos”, apontou a OMS, num comunicado.
O projeto prevê a divulgação pública de sequências e dados genéticos e transparência em torno da publicação de todos os resultados de ensaios clínicos.
Governos e outros financiadores são encorajados a “incluir cláusulas nos acordos de financiamento com empresas farmacêuticas e outros inovadores sobre distribuição equitativa, acessibilidade econômica e publicação dos dados dos ensaios”.
Licenciamento de qualquer potencial tratamento, diagnóstico, vacina ou outra tecnologia de saúde para o “Medicines Patent Pool” – um órgão de saúde pública apoiado pelas Nações Unidas que trabalha para aumentar o acesso e facilitar o desenvolvimento de medicamentos que salvam vidas para países de baixa e média renda.
Promoção de modelos de inovação aberta e transferência de tecnologia que aumentam a capacidade de produção e fornecimento local, inclusive através da adesão ao Open Covid Pledge e à Parceria de Acesso à Tecnologia (TAP).
Denominado como C-TAP, o projeto servirá como uma iniciativa irmã do Acelerador de Acesso às Ferramentas COVID-19 (ACT) e outras iniciativas para apoiar os esforços de combate à COVID-19 em todo o mundo.
Questionamento
Um dos pontos de debate da iniciativa, porém, será seu caráter voluntário no compartilhamento da vacina, o que significa que governos se comprometem a negociar com os fabricantes, e não quebrar patentes.
A entidade Médicos Sem Fronteira aplaudiu a iniciativa para o acesso equitativo às tecnologias. Mas a organização apelou aos governos para que se posicionem ao lado de pacientes e trabalhadores da linha de frente para “adotar medidas que vinculem as partes a qualquer acordo para garantir o acesso de todos às tecnologias de saúde da COVID-19”.
“A escassez global de equipamentos de proteção individual e a falta de capacidade de testes e tratamentos eficazes para responder à COVID-19 têm colocado enorme pressão sobre os países e provedores de tratamento em todo o mundo”, disse a MSF.
“Vacinas, tratamentos e testes seguros e eficazes devem ser desenvolvidos sem direitos exclusivos, produzidos em quantidades adequadas, distribuídos de forma justa e disponibilizados a todas as pessoas, especialmente as mais vulneráveis, em todos os países e gratuitamente no ponto de atendimento”, disse Christos Christou, Presidente Internacional da MSF.
“Agora não é o momento de permitir que abordagens de negócios como as usuais das corporações farmacêuticas e nacionalismo míope dos governos se interponham no caminho da cooperação global em ferramentas médicas para responder a esta pandemia”. A Covid-19 não terminará até que termine para todos”, alertou.
Para o grupo, uma resposta global eficaz à Covid-19 dependerá de não ser permitido nenhum monopólio privado para quaisquer tratamentos, testes ou vacinas para a doença.
“As empresas farmacêuticas controlam tecnologia, dados e conhecimentos através de propriedade intelectual e acordos confidenciais, e muitas vezes permitem que apenas um pequeno número de outras empresas produza e forneça produtos que comercializam, permanecendo no controle de onde estes são vendidos e a que preço”, disse.
“A Gilead Sciences acaba de implantar esta abordagem, excluindo metade da população mundial em um acordo de licenciamento para o remdesivir do medicamento COVID-19. Isto não é aceitável”, atacaram.
“Ao longo dos anos, temos testemunhado muitos exemplos dolorosos de acesso desigual ao tratamento que salva vidas – do HIV e tuberculose resistente a drogas até a hepatite C e Ebola – onde uma abordagem proprietária de medicamentos tem se mantido entre nossas equipes médicas e pacientes, restringindo os cuidados que podemos fornecer”, disse Christou.
Por Jamil Chade
Fonte: UOL