Na semana passada, a Organização Mundial da Saúde (OMS) informou que 348 prováveis casos da popularmente chamada “hepatite misteriosa” já foram registrados em todo o mundo. As primeiras identificações da doença, que afeta especialmente crianças com idades entre 0 e 16 anos, foram notificadas em 5 de abril, quando 10 casos foram detectados na Escócia em menores de dez anos. Desde então, a forma aguda de inflamação no fígado já foi diagnosticada em pelo menos 20 países, como Estados Unidos, Israel, França, Itália e o Reino Unido, que, sozinho, contabiliza mais de 160 casos da “nova hepatite”, ainda de origem desconhecida. Além disso, segundo a OMS, 70 registros adicionais de outros 13 países estão pendentes de exames para confirmação. Até a última terça-feira (10), seis nações já tinham informado mais de cinco casos de inflamação hepática grave em crianças, entre elas o Brasil.
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Assim como os demais tipos da doença, classificados como A, B, C, D e E, a hepatite aguda infantil é identificada como uma lesão no fígado. No entanto, duas particularidades diferenciam as outras formas de lesão dos quadros atuais da enfermidade: a causa indeterminada e o alto índice de pacientes infantis que precisam de transplantes de fígado, que representa 10% dos casos em todo o mundo. Nesse cenário, considerando as semelhanças, diferenças, diagnósticos, sintomas e métodos de prevenção e controle, a Jovem Pan conversou com especialistas para entender: o que a ciência já sabe sobre a hepatite misteriosa?
‘Hepatite Misteriosa’: quais as causas?
O principal questionamento sobre os quadros recentes de hepatite aguda entre crianças é o causador da doença. Enquanto os tipos A, B, C, D e E são fruto de contaminações por vírus, como o adenovírus, que causa sintomas respiratórios e gastrointestinais, vômitos e diarreia, o surto de hepatite aguda ainda não tem um agente causador conhecido pela ciência, explica a infectologista Melissa Valentini, do Grupo Pardini. Segundo ela, os pesquisadores buscam identificar padrões nas biópsias dos pacientes para entender a doença. “Para provar a causalidade dentro de estudo é bem complicado. Alguns casos tinham adenovírus, outros não tinham, alguns tinham Covid, um não tinha nem adenovírus e nem Covid, mas histórico de contato com pessoa infectada pelo coronavírus. O mais provável é que seja uma causa infecciosa, mas a gente ainda não pode bater o martelo.”
Nos Estados Unidos, pesquisadores levantam a hipótese de que a origem das lesões hepáticas em crianças seja o adenovírus 41, após nove pacientes testarem positivo para o patógeno. Em comunicado sobre a hepatite aguda, o Instituto Butantan cita que o adenovírus foi identificado em pelo menos 74 casos no mundo, sendo que 18 deles na presença do F tipo 41 e em 20 pacientes o Sars-CoV-2, causador da Covid-19. Além disso, em 19 pacientes houve a coinfecção. A entidade também menciona que os vírus que causam a hepatite viral aguda, responsáveis pelas versões de A a E da doença, não foram detectados em nenhum dos pacientes analisados, o que reforça a diferença das infecções.
Quais os sintomas da doença?
Os sintomas da hepatite aguda são semelhantes aos outros tipos da enfermidade e incluem: diarreia, vômitos e icterícia, problemas gastrointestinais e dores abdominais, sem registro de febre, informou a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas). “Essa hepatite vem acometendo principalmente as crianças abaixo de cinco anos de idade. Então elas têm um quadro inicial de dor de barriga, dor abdominal, com náusea, vômito, diarreia, e depois evolui para os sintomas mais característicos da hepatite e da insuficiência hepática: a icterícia, que é o amarelão na pele e nos olhos, além da urina mais escura e das fezes mais claras“, explica o pediatra Marcelo Iampolsky, professor de Medicina do Centro Universitário São Camilo.
Há relação com a Covid-19?
Talvez. Como a causa do atual surto da hepatite aguda ainda não foi confirmada, pesquisadores avaliam diversos cenários, entre eles a possível relação com a infecção pelo coronavírus, que pode afetar o fígado, causando lesões profundas. “Na última semana ocorreram alguns avanços importantes com as pesquisas adicionais e alguns refinamentos das hipóteses de trabalho. Atualmente, as principais hipóteses são as que envolvem o adenovírus, e também continua sendo importante o papel da Covid-19“, disse Philippa Easterbrook, do programa mundial da OMS.
O pediatra Marcelo Iampolsky menciona uma possível junção do adenovírus e o Sars-CoV-2 como causa da hepatite aguda. “A combinação dessas duas proteínas virais provoca uma reação imunológica muito forte, então temos como se fossem superagressores. Vamos produzir uma reação inflamatória muito forte e o fígado acaba sendo o principal órgão comprometido. Então a gente tem uma hepatite autoimune desencadeada pela presença de vírus”, menciona, lembrando que as análises estão sendo estudadas.
Hepatite aguda é reação à vacina?
Não. O atual surgimento das lesões hepáticas em crianças não tem relação com a vacina contra a Covid-19. A Organização Mundial da Saúde descartou qualquer ligação de causalidade entre os imunizantes disponíveis para população pediátrica e a hepatite aguda. Da mesma forma, o Instituto Butantan, que é responsável pela produção da CoronaVac, em parceria com a chinesa Sinovac Biotech, reforçou a segurança das vacinas. “A maioria das crianças relatadas com a hepatite aguda não recebeu a vacina contra Covid-19, descartando uma ligação entre os casos e a vacinação neste momento.”
É letal e/ou transmissível?
Sim. A forma aguda das lesões no fígado pode causar a morte de pacientes. Nos Estados Unidos, por exemplo, Centros para a Prevenção e o Controle de Doenças (CDC) investigam 109 casos da hepatite aguda, incluindo cinco mortes. Segundo dados citados pela AFP, as inflamações graves foram detectadas em ao menos 25 estados e territórios norte-americanos, em crianças com idade média de dois anos. Já na Indonésia foram três mortes de crianças pela doença. “O grande problema dessa hepatite específica é que as formas estão sendo muito severas, 10% das crianças evoluíram para insuficiência do fígado e precisaram de transplante, o que não vemos em outras hepatites, como a A e E”, menciona Melissa Valentini. Nos Estados Unidos, o índice de insuficiência hepática causada pelo surto de hepatite aguda chega a 14%.
Quanto à transmissão, pelo desconhecimento do agente causador da hepatite aguda, ainda não é possível confirmar como acontece a transmissão e se ela poderia ocorrer de criança para criança. No entanto, se relacionada com o adenovírus, a transmissão pode acontecer pelas vias fecal-oral, o que reforça a importância de manter os protocolos de higiene. “O adenovírus é transmissível por contato, transmissão fecal-oral, que é o contato com vírus e depois com a mucosa, então fica a importância de continuar com a higienização das mãos”, alerta Melissa.
Como proteger as crianças?
O pediatra Marcelo Iampolsky reforça que a melhor forma de proteger as crianças da hepatite misteriosa é mantendo os cuidados contra infecções virais e completando o esquema vacinal. “A vacina é a única forma de proteção e de diminuir a nossa suscetibilidade”, iniciou o médico. “Uso de máscaras, evitar aglomeração, higienização das mãos. Essas são as principais armas que nós temos. A possibilidade de liberar a CoronaVac para menores de cinco anos [pela Anvisa], se isso for possível, também viria em um momento muito propício, já que são essas crianças as mais afetadas”, concluiu. Da mesma forma, Melissa Valentini reforçou que imunizantes contra a hepatite A e B já fazem parte do calendário vacinal. “Criança doente também não vai para escola. Sempre que possível, higienize as mãos e os brinquedos também, são esses os cuidados que devemos ter.”
Hepatite misteriosa no Brasil
O Ministério da Saúde monitora a incidência de 29 casos suspeitos de hepatite aguda em crianças até a sexta-feira, 13. Segundo as secretarias estaduais, são dois registros da doença no Paraná, três em Pernambuco, quatro em Minas Gerais, seis no Rio de Janeiro e 14 em São Paulo. A Secretaria de Saúde paulista informou à Jovem Pan que seis pacientes estão internados e a pasta aguarda a conclusão de exames para diagnóstico do quadro hepático e, por isso, considera “precipitada a confirmação da doença no Estado”. No Rio de Janeiro, dos seis casos suspeitos, três são moradores da capital fluminense, um foi identificado em Niterói e um de Araruama, além de um bebê de 8 meses, morador de Maricá, que morreu, e a investigação também segue em andamento. “É importante que os pais e responsáveis fiquem atentos aos sintomas das crianças. Se houver qualquer suspeita, elas devem ser imediatamente levadas a um serviço de saúde para que possam ser diagnosticadas e tratadas”, afirmou o secretário de Estado de Saúde, Alexandre Chieppe. Ceará, Tocantins, Bahia, Rio Grande do Norte, Roraima, Distrito Federal, Pará, Rio Grande do Sul e Amazonas afirmaram à reportagem que não há casos suspeitos ou em investigação.