Numa coletiva de imprensa realizada na sexta-feira (16), o secretário de Atenção Primária à Saúde do Ministério da Saúde, Raphael Câmara, recomendou que casais posterguem, se possível, os planos de gravidez em alguns meses em razão do agravamento da pandemia.
Câmara usou as novas variantes do coronavírus para justificar a nova orientação, apesar da falta de pesquisas publicadas a respeito do tema.
“Estudo nacional ou internacional não temos, mas a visão clínica de especialistas mostra que as variantes têm ação mais agressiva nas grávidas. Antes, o risco maior estava ligado ao final da gravidez. Mas, agora, vemos uma evolução mais grave no segundo trimestre e até no primeiro trimestre”, apontou.
O secretário ainda disse que o adiamento da gestação deve ser feito dentro da realidade de cada casal.
“Caso possível, postergar um pouco a gravidez para um melhor momento, para que você tenha uma gravidez mais tranquila. É lógico que a gente não pode falar isso para quem tem 42 ou 43 anos, mas para uma mulher jovem que pode esperar um pouco, é o mais indicado”, explicou.
Mas o que há de evidências sobre o risco de Covid-19 para as futuras mães e seus filhos? E quais os cuidados devem ser tomados se você estiver grávida?
O que a ciência já sabe
Os nove meses de gestação são marcados por uma série de mudanças no corpo da mulher.
O sistema imunológico, por exemplo, sofre várias alterações. O objetivo é evitar que as células de defesa ataquem o feto, pois metade das informações genéticas que ele carrega vem do pai e não é familiar ao corpo da mãe.
Seguindo essa lógica, o bebê em desenvolvimento não deixa de ser um “corpo estranho”, que pode gerar uma resposta imune indesejada. E isso exige certas adaptações do organismo feminino.
Outra área afetada ao longo dos nove meses é a respiração. Conforme o útero cresce, ele começa a pressionar os órgãos do abdômen e o diafragma, o músculo envolvido diretamente no processo de inspiração do oxigênio e de expiração do gás carbônico.
Logo, não é de se estranhar que doenças infecciosas que afetam os pulmões sejam particularmente preocupantes nas grávidas: esse mix de comprometimento imunológico e respiratório as coloca numa situação de relativa vulnerabilidade.
É justamente por isso que essas mulheres fazem parte dos grupos prioritários das campanhas de vacinação contra a gripe que acontecem todos os anos no Brasil.
E na Covid-19?
Desde que o coronavírus começou a se espalhar e virou uma preocupação mundial, os especialistas acompanham os efeitos que o agente infeccioso poderia ter nas gestantes.
Após um período de muita incerteza e dados desencontrados, ficou claro que grávidas com Covid-19 apresentavam maior risco de agravamento e necessidade de intubação quando comparadas às mulheres da mesma idade que não esperavam filhos.
Um estudo publicado em setembro de 2020 no British Medical Journal calculou que gestantes infectadas com o coronavírus tinham um risco 62% maior de internação em UTI e 88% mais probabilidade de necessitar de ventilação mecânica invasiva.
O trabalho, liderado pela Universidade de Birmingham, no Reino Unido, reuniu dados de 11 mil grávidas com suspeita ou confirmação de Covid-19 que precisaram ser internadas por qualquer motivo.
Os dados delas foram confrontados com os de outras mulheres da mesma faixa etária que também buscaram atendimento médico, mas não esperavam um bebê.
Um outro estudo, feito pelo Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, encontrou números parecidos: as mulheres grávidas americanas com Covid-19 apresentavam um risco 1,5 vezes maior de ir para a UTI e 1,7 vezes superior de necessitar de ventilação mecânica.
“Um fator que ajuda a explicar esse maior risco tem a ver com a diminuição da capacidade respiratória, especialmente no terceiro trimestre de gestação. O crescimento do útero restringe o abdômen e o tórax”, explica o infectologista Ruan de Andrade Fernandes, do Hospital e Maternidade Brasil, da Rede D’Or São Luiz, em São Paulo.
Portanto, a Covid-19 poderia somar uma dificuldade extra aos pulmões e levar a um quadro mais grave, que exige maior cuidado.
“Também já sabemos que a Covid-19 aumenta o risco de parto prematuro”, acrescenta a infectologista Mirian Dal Ben, do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.
Por ora, apesar de todas as complicações, os trabalhos publicados mundo afora não encontraram uma maior mortalidade pela Covid-19 em mulheres grávidas.
Falta de assistência adequada
Os números do Observatório Obstétrico Brasileiro Covid-19 (OOBr Covid-19), porém, mostram que a realidade das gestantes brasileiras durante a pandemia é assustadora.
Ao longo de 2020, foram registradas 453 mortes pela infecção com o novo coronavírus nas mulheres que esperam ou acabaram de dar à luz a um filho, o que representa uma média semanal de 10,5 óbitos.
Nos primeiros quatro meses de 2021, já foram registradas 289 mortes, o que faz a taxa semanal de óbitos nessa população dobrar.
Na comparação entre os dois anos, o crescimento de mortes entre grávidas foi de 145,4%, enquanto na população geral esse aumento ficou em 61,6%, calcula o OOBr Covid-19.
A explicação para esse fenômeno estaria na falta de assistência adequada: com a chegada de tantos pacientes num curto espaço de tempo, muita gente não teve acesso aos leitos de enfermaria ou UTI e, infelizmente, acabou morrendo na espera de um atendimento.
De acordo com as fontes ouvidas pela BBC News Brasil, isso impacta especialmente grupos com a saúde mais vulnerável, como as gestantes.
Uma pesquisa publicada em julho de 2020 já apontava essa tendência: até o dia 18 de junho do ano passado, o Brasil respondia por 77% de todas as mortes de gestantes por Covid-19 do mundo.
Os dados, colhidos por especialistas da Fiocruz e de outras quatro instituições, indicavam que 23% dessas mulheres não tiveram acesso a um leito de UTI e 36% nem chegaram a ser intubadas.
E qual o papel das variantes?
Como o próprio secretário do Ministério da Saúde adiantou, ainda não existem muitas informações publicadas e validadas sobre o impacto das novas variantes, detectadas em locais como Reino Unido, África do Sul e Brasil.
Por ora, ainda não há certeza se elas são realmente mais agressivas às gestantes do que as versões anteriores do coronavírus.
“Existe uma especulação de que as novas variantes estejam associadas a uma maior transmissibilidade na população geral, mas mesmo isso ainda não é consenso na área”, avalia Fernandes.
“Ainda não temos estudos específicos sobre o impacto das variantes nas grávidas, mas o fato de essas cepas serem aparentemente mais transmissíveis levaria a um aumento nos casos graves, nas internações e nas mortes por Covid-19 em todas as populações, incluindo nessas mulheres”, aponta Dal Ben.
A última recomendação do Governo Federal, portanto, parece estar baseada em relatos e observações empíricas colhidas com alguns profissionais que atuam em hospitais e maternidades.
Atualmente, entidades como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Sistema Nacional de Saúde do Reino Unido entendem que as gestantes são um grupo que apresenta risco baixo de desenvolver quadros severos de Covid-19.
Mesmo assim, a possibilidade de agravamento da enfermidade é maior em comparação com mulheres da mesma idade que não gestam uma criança.
O risco aumenta mais nos casos em que a gestação ocorre numa idade mais avançada ou está relacionada a quadros de sobrepeso, obesidade, hipertensão ou diabetes.
Outro fator que exige ainda mais atenção é quando essa mulher trabalha em serviços essenciais, como as médicas, enfermeiras e outras profissionais que estão na linha de frente do combate à pandemia.
Por fim, a Covid-19 costuma ganhar uma dose extra de perigo em grávidas que fazem parte de grupos vulneráveis e minorias étnicas, que têm acesso ainda mais limitado a serviços de saúde.
E os bebês?
A boa notícia é que as crianças não são particularmente afetadas pela infecção — nem antes e muito menos depois do parto.
Até o momento, um quadro de Covid-19 ao longo da gestação não parece estar envolvido com casos de aborto espontâneo ou problemas no desenvolvimento do bebê.
A transmissão do vírus da mãe para o feto ou para o recém-nascido também é algo raro.
Uma pesquisa conduzida pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos, não encontrou indícios do coronavírus em 127 amostras de plasma sanguíneo, cordão umbilical ou placenta.
Os achados foram publicados no Journal of the American Medical Association.
Uma outra investigação, realizada na Universidade da Califórnia em São Francisco (EUA), também observou que os recém-nascidos não apresentam complicações após suas mães serem diagnosticadas com Covid-19.
A doença não alterou parâmetros importantes na hora do parto e nas primeiras oito semanas de vida, como peso ao nascer, dificuldades para respirar, quadros de apneia ou o aparecimento de infecções no sistema respiratório.
Vale postergar os planos?
A recomendação de adiar uma eventual gestação não é algo particularmente novo nas histórias das epidemias e das pandemias recentes.
Nas últimas décadas, orientações parecidas foram dadas por autoridades em saúde pública diante das emergências da aids (anos 1980 e 1990), da gripe H1N1 (2009) e do zika (2016).
Mas a questão levanta preocupações éticas relevantes.
Um artigo publicado na revista The New England Journal of Medicine e assinado por três especialistas em pediatria, obstetrícia e bioética dos Estados Unidos questiona fortemente políticas públicas do tipo.
“O exercício da autoridade pública em uma área tão profundamente pessoal e privada como a decisão sobre se e quando ter um filho requer forte justificativa, dadas as muitas questões éticas que levanta. Existem várias áreas potenciais de preocupação. O primeiro está relacionado à autonomia reprodutiva”.
As pesquisadoras também lembram que historicamente orientações e para postergar a gestação representaram “violações éticas flagrantes”.
“Outra preocupação é o potencial de discriminação. Mesmo políticas objetivamente neutras podem se traduzir em experiências diferentes de acordo com a raça, grupo étnico ou classe social. O conselho público que desencoraja a gravidez também pode transferir indevidamente a responsabilidade pela gravidez somente para os pais, isentando as instituições que são responsáveis por mitigar os danos e têm o poder de fazê-lo”, concluem.
Até o momento, recomendações de adiar os planos de ser mãe e pai não parecem ter sido oficialmente adotadas por outros países — no máximo, as autoridades sugerem que o casal converse com especialistas e avalie os riscos e benefícios antes de tomar qualquer decisão.
Fernandes entende que o tema é controverso e não há uma resposta única sobre ele. “Diferentemente do que aconteceu na aids e na zika, agora ainda não está claro o risco de transmissão de Covid-19 pela placenta, da gestante para o feto”, compara.
“Talvez a abordagem pudesse ser mais no sentido de oferecer informações ao casal sobre riscos e benefícios, e não apenas pedir para postergar os planos de gravidez”, completa o infectologista.
Já Dal Ben acredita que é preciso ver caso a caso.
“Nessas horas, precisamos pensar em vários fatores. Se a mulher estiver com 38, 40 anos, quase no fim da fase reprodutiva, uma recomendação dessas não faz sentido. Mas, caso ela tenha entre 20 e 30 anos, talvez pesar prós e contras e aguardar uns dois anos para ter uma gravidez mais tranquila não seja um problema tão grande assim”, pensa.
Estou grávida. O que fazer?
A OMS recomenda que a mulher tome algumas precauções e preste bastante atenção a possíveis sintomas de Covid-19.
Os cuidados são os mesmos que devem ser seguidos pelo resto da população:
• Lavar as mãos com frequência com água e sabão ou álcool gel
• Manter uma distância segura de outras pessoas
• Evitar encontros, reuniões e aglomerações com indivíduos que não fazem parte de seu convívio diário
• Usar máscara toda vez que precisar sair de casa
• Evitar tocar os olhos, o nariz e a boca
• Praticar etiqueta respiratória: cobrir boca e nariz com o braço ou com lenço descartável toda vez que tossir ou espirrar
Dal Ben destaca que os cuidados não devem ser redobrados apenas pelas gestantes, mas por todo mundo que têm contato com elas.
“Chamamos isso de proteção de ninho. Quem convive com essas mulheres precisa, na medida do possível, usar máscaras sempre, sair o mínimo possível e reforçar todas as ações preventivas”, sugere a médica.
Outra dica importante é ficar de olho em qualquer sintoma sugestivo de uma infecção por coronavírus, como tosse, febre, falta de ar, perda de olfato e paladar, problemas gastrointestinais…
Se esses incômodos aparecerem, vale consultar o médico e pedir orientações sobre a necessidade ou não de fazer um teste de diagnóstico.
Falando em profissional da saúde, todas as entidades nacionais e internacionais reforçam que o acompanhamento pré-natal é algo que não pode ser ignorado: o casal deve passar pelas consultas e exames que garantem o bom andamento da gestação.
Algumas dessas orientações e atendimentos, inclusive, podem até ser feitos à distância, por meio de aplicativos de videochamada.
E quando houver a necessidade de ir até uma clínica ou hospital para realizar exames, é necessário que os futuros pais sigam todas as recomendações que diminuem o risco de contágio, como uso de máscaras e o distanciamento social.
E a vacinação?
Essa é uma área com muitas controvérsias. Isso porque a maioria das vacinas contra a Covid-19 não incluíram as gestantes como participantes dos testes clínicos.
Com isso, há pouca observação sobre a segurança e a eficácia dos imunizantes nesse grupo específico.
Mas a experiência de mundo real, nos países onde a campanha de imunização já está mais adiantada, indica que não há grandes preocupações sobre a aplicação das doses nessas mulheres.
A OMS entende que as vacinas já aprovadas pelas agências regulatórias não apresentam nenhum risco específico durante a gravidez.
Entre as vacinas aprovadas no Brasil até o momento, também não há nenhuma preocupação maior.
“A CoronaVac é feita de vírus inativado, enquanto a AZD1222 usa a tecnologia de vetor viral. Como elas não usam vírus vivos, não teriam motivos para fazer algum mal na gestação”, avalia Fernandes.
No dia 15/03, o Ministério da Saúde atualizou suas diretrizes a respeito do assunto.
As últimas recomendações indicam que as gestantes que apresentam comorbidades (portadoras de diabetes, hipertensão, obesidade, doenças cardiovasculares, asma, doenças renais crônicas, doenças autoimunes, imunossuprimidas ou transplantadas) estejam entre os grupos prioritários.
A orientação é que essas mulheres confiram o cronograma de vacinação de suas cidades ou estados e procurem os postos de saúde nas datas estipuladas pelos gestores de saúde locais.
Mas e as gestantes que não apresentam nenhuma dessas doenças?
O ministério admite que elas também poderão ser vacinadas — elas até foram incluídas recentemente no Plano de Operacionalização da Imunização Contra a Covid-19.
Mas a orientação é conversar com o médico de confiança para fazer uma avaliação dos riscos e dos benefícios antes de tomar qualquer decisão.
Vale aproveitar a discussão também para reforçar a necessidade de atualizar a carteirinha de vacinação com as doses que previnem contra outras doenças.
A Sociedade Brasileira de Imunizações possui um calendário específico para gestantes, com todos os imunizantes recomendados e contraindicados nessa fase.
Fonte: BBC News Brasil