Um fígado debilitado por um mix de substâncias tomadas para dormir, ficar alerta, ganhar definição muscular e, principalmente, emagrecer pode ser a principal chave para entender o quadro que terminou com a morte da cantora Paulinha Abelha, que tinha 43 anos.
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Com base nos resultados divulgados na segunda-feira (7) de um exame toxicológico e de uma biópsia, além da lista de medicamentos receitados para a cantora antes da internação, ouvimos especialistas que explicam:
• quais as substâncias tomadas pela artista,
• para que elas servem,
• quais as possíveis complicações que elas causam,
• as lacunas que ainda persistem sobre o que ocorreu com a vocalista.
Antes de uma análise geral dos medicamentos, conheça em três pontos um resumo do que dizem os exames médicos e o que consta na receita:
1. Resultado da biópsia (laudo anatomopatológico): exame mostra lesão hepática aguda com necrose. Traduzindo: o fígado da cantora estava fortemente debilitado, com áreas mortas. Além disso, tinha retenção de bile no fígado (colestase). O fígado, entre outras funções, é responsável por eliminar substâncias tóxicas por meio justamente da bile. O laudo não crava, mas diz que as lesões são compatíveis com as provocadas por medicamentos.
2. Exame de substâncias tóxicas no corpo (triagem toxicológica): Deu positivo para duas substâncias: 1) anfetaminas (remédios que agem no cérebro aumentando estado de alerta e que têm efeito sobre o apetite) e 2) barbitúricos (sedativos e calmantes). Deu negativo para outras 10 substâncias, incluindo drogas.
3. Receita de medicamentos: o receituário assinado por uma médica nutróloga indicava um conjunto com 7 medicamentos ou fórmulas. Ao todo, eram 18 substâncias. Na análise dos especialistas consultados pelo g1, o foco dessa lista era inibir a absorção de carboidratos, gordura, atuar no humor, no sono e apoiar nos treinos físicos para ganhar passa muscular.
A avaliação geral de dois hepatologistas e uma nutricionista após analisarem os laudos e os itens que constam na receita é:
“O principal a apontar é essa “salada de compostos” na receita. Com uma certa frequência eles interagem entre si e podem resultar em danos sérios ao fígado”, avalia Mário Kondo, professor adjunto de gastroenterologia da UNIFESP e hepatologista do Hospital Sírio-Libanês de São Paulo.
Para Vanderli Marchiori, nutricionista e fitoterapeuta com especialização em medicina complementar:
“Sem dúvida alguma, era uma pessoa que tomava remédio para dormir e para acordar. E para se manter magra o tempo inteiro. E, infelizmente, talvez até de acordo com o tempo de uso, o organismo não deu conta”, afirma Vanderli.
O hepatologista Raymundo Paraná, professor titular da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e membro da Sociedade Brasileira de Hepatologia, avalia:
“A intoxicação por fórmulas (para emagrecer) eu vejo com frequência no SUS e na clínica privada. A frequência é assustadora. Felizmente, a imensa maioria evolui bem com a suspensão. Só poucos tem desfechos gravíssimos”, afirma Paraná.
Quais os remédios e substâncias tomadas por Paulinha?
A receita com sete tópicos tinha três dedicados a medicamentos alopáticos (da medicina tradicional, normalmente agem produzindo efeitos contrários aos da doença, por exemplo, antidepressivos ou antibióticos).
Para além dos remédios tradicionais, a lista tinha uma série de suplementos alimentares, extratos de plantas e fitoterápicos (obtidos de plantas medicinais ou de seus derivados, utilizados com finalidade profilática, curativa ou paliativa).
Para que servem as substâncias e os medicamentos receitados?
Os remédios listados tinha como função regular o humor, sono e apetite.
Entre os tradicionais, o primeiro da lista era o bupropiona, um antidepressivo que costuma ser usado em tratamentos para deixar de fumar, mas ela também é eventualmente receitado por atuar contra a compulsão por doces, segundo Vanderli Marchiori.
“O perfil de segurança é bem satisfatório para o seu uso isolado, mas tem muitas interações medicamentosas perigosas. É preciso cautela quando é usado com outras medicações”, alerta o hepatologista Raymundo Paraná.
Outro remédio alopático da lista é o venvance, usado para tratar hiperatividade e déficit de atenção, mas que também pode ser aplicado em tratamento contra transtorno alimentar. É da classe das anfetaminas, substância que apareceu positiva no laudo.
“Pode causar agressão hepática, mas não é habitual se usado isoladamente. Tem muitas interações medicamentosas nefastas sobretudo com antidepressivos. Pode causar arritmia e não deve ser usado em pacientes com insuficiência renal”, explica o hepatologista Raymundo Paraná.
Por fim, o Orlistat fecha a lista dos remédios tradicionais voltado especificamente para o emagrecimento: age no intestino. Ela inibe uma enzima produzida no pâncreas, a lipase, que faz a ingestão de gorduras. Isso faz com que cerca de 30% da gordura ingerida na alimentação seja eliminada nas fezes.
“Seu efeito adverso é a perda de continência, eliminando gorduras através do ânus. O indivíduo pode passar por situações vexatórias, por isso o próprio paciente diminui a ingestão de alimentos gordurosos. Em relação ao fígado é muito seguro, mas tem casos de hepatite.
Na outra metade da lista o foco das outras quatro fórmulas e suplementos era:
• acalmar, reduzir estresse e ansiedade;
• ajudar no combate da insônia e a manter a atenção;
• impede a absorção de carboidrato;
• ganho de massa muscular.
Como as fórmulas ou extratos não possuem uma padronização de dosagem para uso ou mesmo não foi possível localizar estudos de eficácia científica, não vamos listar os nomes de todas as substâncias que as compõem.
Quais as possíveis complicações das substâncias?
O professor e hepatologista Raymundo Paraná destaca que os itens da lista classificados como suplementos alimentares e afins não apresentam estudos de fase 3 (testes em larga escala com humanos comparando o produto com um placebo) para atestar eficácia e dosagem segura.
Além de fazer ressalvas generalizadas para praticamente toda a lista, o professor ressalta que há relatos de complicações para o uso da valeriana, da paulinea e da garcinia camboja.
“Sobre a garcínia, o que nós temos de fato, baseado em estudo clínico, é um alerta do NIH dos EUA que a garcínia pode causar agressão hepática e algumas vezes essa agressão pode ser grave. É uma droga que deve ser evitada”, afirma Paraná.
O professor Mario Kondo também destaca o mesmo composto. “Pelo menos essa garcínia camboja é bem conhecida, mas outros podem estar envolvidos (no desgaste do fígado)”, avalia Kondo.
Já a nutricionista Vanderli Marchiori avalia que o receituário era extenso, mas que de modo geral a prescrição “fazia sentido”. “Sem conhecer o caso, tirando o bupropriona e o venvance, faz sentido para algumas pessoas”, avalia Vanderli, que não viu na lista nenhuma quantidade prescrita acima do que é comum no meio.
Quais as lacunas no diagnóstico e na análise do caso?
A certidão de óbito de Paulinha aponta insuficiência renal aguda, hepatite, hipertensão séptica e meningoencefalite. Os médicos que atenderam a cantora apresentaram o caso como um quadro de comprometimento multissistêmico. A família ainda aguarda novos exames para descobrir o motivo das rápidas complicações de saúde. Ainda não se sabe o motivo de ela ter apresentado rápida piora e as complicações terem afetado outras partes do corpo.
Uma das principais funções de um fígado saudável é depurar o sangue. Em um quadro de hepatite fulminante causado pela ingestão de substâncias tóxicas, as células do fígado – chamadas de hepatócitos – morrem rapidamente, causando o colapso do órgão. Com isso, a corrente sanguínea “envenenada” pelas toxinas causa a inflamação de outros órgãos. Geralmente, o cérebro é o primeiro a falhar, causando a morte encefálica.
O papel dos remédios no comprometimento parece ser uma das chaves da análise. Em entrevista ao Fantástico no dia 27 de fevereiro, o marido de Paulinha Abelha, Clevinho Santos, disse que a artista nunca tomou anabolizantes, mas que “sempre tomou” remédios do tipo “mais diuréticos”. “Quando tinha um show, uma coisa que ela queria dar uma secada, esses chás de emagrecer”, contou.
O período de exposição a medicamentos pode ter comprometido o fígado e ainda não se sabe a quanto tempo ela estava tomando os medicamentos da atual receita.
“Apenas como especulação, é possível que ela tenha tido um quadro como o da enfermeira Mara Abreu. Hepatite aguda grave que, se não transplantada a tempo, pode rapidamente levar à morte”, aponta Mário Kondo, professor adjunto de gastroenterologia da Unifesp e hepatologista do Hospital Sírio Libanês de São Paulo.
Para Raymundo Paraná, que coordena um ambulatório que estuda casos de hepatite fulminante, é preciso ser “absolutamente honesto e transparente”. Ele afirma que é muito difícil o diagnóstico de toxicidade. “Não é por outro motivo que tem tantos suplementos fitoterápicos vendendo sem nenhum controle, é porque o diagnóstico é difícil”, afirma.
“São pouquíssimos centros no Brasil que podem contar com a estrutura necessária (para investigar cada caso), então a subnotificação é a regra”, afirma Paraná. Ele explica que mesmo com a biópsia do fígado não há garantias absolutas, já que ao contrário de outras doenças como alcoolismo ou hepatite a ou B, não há sinais visíveis individuais da intoxicação na maioria dos casos, e na maioria dos casos o diagnóstico ocorre por eliminação e avaliação do histórico da paciente.
Fonte: g1