Extenso em território e povo, o Ceará parece concentrar vários países no solo em que faz morada. Congrega sertão, serra e litoral. Mistura baião de dois, leguminosas e a fauna do fundo do mar. Em bonita sintonia, também reúne um emaranhado de expressões populares, cultura que transpõe fronteiras e se alastra Brasil afora, conquistando reverência e admiração.
Intersecção entre Juazeiro do Norte, Crato, Barbalha e alguns municípios limítrofes, a região do Cariri, desta feita, parece nação própria dentro da pátria cearense maior. Com forte identidade e dono de ricas manifestações, seja na gastronomia, nas artes ou no tecido geográfico, o local elege o diálogo com a tradição de maneira a alargar as possibilidades de contato e apreciação com nossas raízes. É símbolo concreto de integração e potência.
A seguir, você confere o depoimento de seis importantes personalidades cearenses, de grande contato e imersões pelo solo caririense, sobre a região dos diversos mestres, encontros e expressões. Instigados e instigadas a perpetuar sólido legado e influência, responderam à pergunta: “Por que o Cariri é um dos grandes polos culturais do Ceará?”.
Alemberg Quindins
Pintor, escritor, músico, socioeducador, arqueólogo e criador da Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Kariri
O Cariri não é um dos grandes polos culturais do Ceará. É “o” grande. Vou explicar porquê: primeiramente, porque não se trata da região Cariri, e, sim, o território da Chapada do Araripe. É uma confluência de quatro Estados: Ceará, Pernambuco, Piauí e Paraíba. Um resumo do Nordeste. A Chapada do Araripe tem uma influência nesse território desde o período cretáceo. Em torno dela, de um lado você tem Luiz Gonzaga, a Pedra do Reino, de Ariano Suassuna e a Missa do Vaqueiro, por exemplo; de outro, do lado de cá, temos Padre Cícero, Patativa do Assaré, Espedito Seleiro, toda uma cultura. A Chapada é um platô central. Aqui, era o único lugar onde Lampião se ajoelhava e deixava as armas na porta. Território sagrado. Portanto, o Cariri é um oásis em pleno sertão. É o solo cultural do Ceará por conta de toda essa força que vem da geologia, da paleontologia, da cultura. É onde você entende a importância do contexto da Chapada do Araripe para o mundo. Nosso manancial é esse: a cultura. A maioria dos mestres da cultura popular estão aqui. E, da forma como acontece em solo caririense, essa reunião de tanta coisa, não vamos encontrar em nenhum outro lugar do Estado.
Dane de Jade
Atriz-pesquisadora, produtora, arte-educadora, radialista e gestora cultural
A identidade vai se consolidando a partir dos valores que são preservados por meio do olhar de cada comunidade. O Cariri é um exemplo vivo de identidade em diversos aspectos. A gastronomia, os modos de vestir, a oralidade, os saberes e fazeres são questões discutidas no âmbito da salvaguarda, cola simbólica que é constituída na coletividade e em cima dos valores que são dignos de serem preservados. O Cariri tem suas características: se apresenta de forma singular, onde povos que habitaram essas terras transmitiram seus saberes com ampla informação que, repassadas, nos dão a percepção de um lugar que resiste aos seus símbolos, que são ancorados na memória ancestral. Nesse sentido, o lugar torna-se articulação entre memória, símbolos e identidade. O lugar como espaço de significados interage no cotidiano das pessoas, incorporando suas histórias e seus contextos familiares, agindo como perpetuação da transmissão de suas memórias.
Dodora Guimarães
Presidente do Instituto Sérvulo Esmeraldo, apaixonada pelo Cariri desde criancinha
O Cariri é a confluência do Nordeste brasileiro. Do nordeste rico, insubmisso e inventivo. Terra muito antiga (Bacia do Araripe, período Cretáceo, Geopark Araripe), ela guarda conexões profundas com o passado e o futuro. O seu presente, portanto é o da Arte, do Sagrado e do Profano em festa. Uma terra que nos deu um ser humano como Padre Cícero só pode ser divina. E o que dizer dos seus artistas? Da sua paisagem? Da sua cultura? Um caldeirão borbulhante, em constante ebulição. O Cariri é o mundo rodopiando. De Várzea Alegre (onde vive e trabalha o Mestre pintor Maciej Babinski) a Campos Sales (das inscrições rupestres), de Ingazeiras (terra do Aldemir Martins) a Santana do Cariri (onde está localizado o Museu de Paleontologia), o Cariri tem como seu portal Juazeiro do Norte (a nossa Meca) que divide com o Crato o nosso Santo Padrinho Cícero.
Heitor Feitosa
Presidente do Instituto Cultural do Cariri
Acredito que o Cariri é um dos polos culturais do Ceará por três elementos básicos: natural, histórico e religioso. Falando-se do natural, temos a chapada, os fósseis, as águas em abundância e a biodiversidade bem peculiar, por meio do semiárido; o elemento histórico remete à convergência de índios de várias etnias antes da chegada do branco, como tupis e tapuias, promovendo um caldeamento cultural antes da invasão europeia. Num segundo instante, essa convergência promovida pela Coroa Portuguesa propiciou a chegada de pessoas de várias partes do Nordeste – baianos, sergipanos, alagoanos, pernambucanos, norte-rio-grandenses – e também portugueses, o que permitiu um caldo de cultura ainda maior; por fim, o elemento religioso é forte na região porque, aqui, o branco católico cristão encontra um terreno fértil já na cultura indígena, e aí a fanatiza com os dogmas católicos, ensejando o catolicismo popular.
Francisco do O’ Lima Júnior
Professor reitor da Universidade Regional do Cariri (URCA)
O Cariri é um grande polo cultural do Ceará e do Nordeste e, portanto, um dos grandes destinos turísticos, porque, na sua constituição, guarda diversos atributos que conservam um pouco a história do planeta, a trajetória da chegada do homem pelas terras do continente americano, e a própria história da vida. Do ponto de vista cultural, por ser aqui uma das regiões que iniciaram o processo de ocupação – não de incorporação – plena do território cearense, essa ocupação mais pretérita permitiu que a miscigenação entre as três raças, aqui no Cariri, fosse mais plena. Está lá, nas origens, fazendo com que nós tenhamos elementos de todas as culturas latentes no povo caririense. O reisado de Barbalha, a manifestações dos penitentes; o Crato mesmo como a cidade de cultura, que foi o primeiro centro de ensino secundarista do interior do Ceará, um dos primeiros do Nordeste, já deu essa conotação de uma cidade cultural. E, de lá pra cá, essas ocorrências só se fortaleceram com o passar do tempo. Isso dá a dimensão da região do Cariri ser um dos polos culturais centro-nordestinos, e não só do Estado do Ceará.
Gilmar de Carvalho
Pesquisador de arte e cultura
Diria que o Cariri é o grande polo cultural do Ceará. Primeiramente, a Chapada é um oásis, em meio ao sertão tão brabo quanto instigante. E tem o Padre Cícero, esta figura iluminada, que nasceu no Crato e fundou o Juazeiro. O “milagre” é um instante seminal. Foi quando multidões de todos os estados se deslocaram para a “Nova Jerusalém” sertaneja em busca de uma vida melhor. A máxima beneditina de cada casa com um altar e uma oficina vingou. E a multiculturalidade se expandiu pela região. Chegaram com os romeiros, novas práticas, folguedos, comidas, e visões de mundo. Essa mistura deu no que deu: uma cultura que se atualiza, se recicla e que explode, um lugar para ser estudado e vivido, em sua plenitude. Este é o Cariri que eu amo e busco entender.
Por Diego Barbosa
Fonte: Diário do Nordeste