Um acessório em específico anunciou a chegada do momento mais esperado pelos barbalhenses neste fim de semana: a grinalda da noiva. Era início da noite de sábado, dia 28 de maio, quando as primeiras movimentações em torno da Praça Matriz de Barbalha davam o tom do início da Festa de Santo Antônio, padroeiro do Município.
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Mulheres com véu e grinalda andavam por entre as ruas do Centro histórico de Barbalha, cujas vias estavam preenchidas com bandeirolas expostas por toda parte e balões de São João afixados nos postes. “Hoje eu arranjo um marido”, gritou, com misto de esperança e brincadeira, a microempresária Joice Bezerra Justino.
A euforia presente no grito e em sua decoração das vestes, com direito a véu e grinalda, fazia jus à tradicional e simbólica “Noite das Solteironas”. O momento em que marca a abertura oficial do Festejo de Santo Antônio, cuja programação cultural, que retorna após os cancelamentos diante da pandemia, se estende até o dia 12 de junho, com expectativa de reunir 150 mil pessoas neste período.
“Sempre ouvia dizer que quem quer casar tem que vir pra cá. Basta ter fé, beber o chá e sentar no Pau da Bandeira. Depois é só esperar por Santo Antônio”, explicou com bom humor Joice Bezerra, que percorreu quase 600 km entre Natal (RN) e Barbalha.
A poucos metros de Joice, um grupo de mulheres, a maior parte delas também usando grinalda, se espremia para tirar uma foto em frente a “Casa das Solteironas”. O local é o mais famoso e procurado nesta abertura do Festejo.
Querendo se casar, ou não, turistas e nativos passam em frente ao local para fazer um registro com Socorro Luna, que se autointitula, “a Solteirona mais famosa do Brasil”. Ela é criadora desse episódio que ganhou notoriedade, rompeu os limites do Município e hoje é conhecido em todo o País.
“Em mais de 20 anos, muitos casais já se uniram através das simpatias que eu criei”, orgulha-se Luna, que nesta noite usava um vestido de noiva ao melhor estilo junino: cores vivas em formas quadriculares e grinalda na cabeça. “Eu sempre estou a caráter”, disse a septuagenária.
Dentre essas histórias de romance alcançados através da fé expressa em Santo Antônio, está a do médico Pablo Pita, de 36 anos. Há cinco anos, ele conheceu Erica Joana Vieira Pita, que mais tarde viria a ser sua esposa e mãe de seus filhos. Mas, essa história de final feliz teve de ter, conforme eles próprio reconhecem, um empurrão divino.
“Conhecia a Erica em meados da metade de maio de 2016. A gente trocava mensagem e tentava marcar um cinema ou uma saída, mas nunca dava certo. Na Noite das Solteironas daquele ano, ela me disse que iria ‘dar uma passada’ lá e se tudo desse certo o cinema iria ocorrer no domingo, no dia seguinte. Pois bem, o esperado cinema saiu e ali demos nosso primeiro beijo”, narra Pablo.
“Eu radiante, muito empolgado, já estava imaginando a semana que viria. Eis que na segunda-feira, um dia após o cinema, assistindo o CETV local, vi uma matéria da Festa de Barbalha. Quando menos espero, vejo a Erica sendo entrevistada e, ao vivo, ela bebeu o famoso chá com ‘propriedades casamenteiros’. Ri muito e vi que Santo Antonio tinha agido rápido”, brinca, ao relembrar.
Desde aquele primeiro beijo, eles não mais se separam e estão juntos até hoje. Noivaram naquele mesmo ano e, em dezembro de 2017, se casaram. Hoje têm dois filhos, Benicio e Pedro. “Depois daquele dia, nunca mais nos separamos, e somos muitos felizes, somos gratos à vida, a Deus e a Santo Antônio”, completa Pablo.
Essa gratidão levou o casal a retornar, em 2017, à festa para agradecer. “Depois eu soube que até promessa para São José ela já tinha feito, em busca de um bom marido”, diz o médico. Mas, calma. O Santo casamenteiro é Santo Antônio ou São José? Érica explica em tom bem humorado: “dizem que Santo Antônio arruma um marido rápido e São José um bom marido”.
A personal Ana Grasiella Vieira viveu isso na pele. Por cinco anos ela frequentou a Noite das Solteironas com um único e exclusivo objetivo: “encontrar seu grande amor”. No último ano, em 2012, ela levou a sério e cumpriu à risca todas as simpatias: bebeu chá feito da madeira do Pau da Bandeira, colocou a imagem de Santo Antônio pendurado no pescoço e bebeu da pinga Xô Caritó.
“Deu certo. Em 2014 casei”, relembra. O casório tão desejado, porém, não durou. “Logo no ano seguinte me separei”, acrescenta Grasiella. Naquele mesmo ano, em conversa com sua mãe – hoje já falecida – ela a questionou o motivo pelo qual “Santo Antônio tinha dado o homem errado”. Sua mãe, replicou: “Santo Antônio dá qualquer homem, São José nos apresenta o certo”.
Apesar da “desilusão”, Grasiella confidencia seguir “crente a Santo Antônio” e, agora, estende os pedidos também a São José. “Quero, sim, casar. Acredito no amor”, diz.
Verdade ou não, Rose Queiroz, de 32 anos, resolveu não arriscar e se apegou aos dois santos. Neste ano de 2022, ela esteve pela primeira na “Noite das Solteironas” com o mesmo objetivo de Grasiella, Érica e tantas outras presentes na Festa: “encontrar um marido”. Confiante, ela diz se apegar aos dois santos e, “para fazer sua parte”, “bebeu o chá e a pinga”.
“Acredito bastante. Agora é só esperar”, diz. Acreditar é, segundo Socorro Luna, o grande segredo. “Todas aquelas que vêm aqui com fé e confiança, são atendidas. Em duas décadas eu perdi as contas de quantas mulheres desencalharam”, garante.
Pergunto, então, qual seu estado civil. Socorro parece ter a resposta na ponta da língua. Em fração de segundos ela olha fixamente em meus olhos e diz: “sou a Solteirona mais feliz do Brasil. E, digo mais, não casei, pois Santo Antônio não deixa. Meu laço é com ele e assim quero manter. Meu compromisso é com essas mulheres que tanto buscam um bom marido”, diz, com olhar fixado em mim e segurando em minhas mãos.
Ao observar aquela que, aos que viam, transmitia uma conexão verdadeira, a nutricionista Samara Gurgel se aproxima e, como quem deseja contar um segredo, sussurra baixo em meu ouvido: “moço, acredite nela. Eu sou testemunha”. Instigado, olho para a jovem e pergunto:
– Você conseguiu um marido? – Ela responde olhando para seu agora marido, e depois completa.
– Estou casada há um mês.
A história de Samara começou a ser escrita há 4 anos. O “empurrãozinho” dela foi iniciada por suas amigas. “Elas escreveram meu nome no Pau da Bandeira. E a crença popular diz que, quando alguém faz isso sem que saibamos, Santo Antônio retribui”.
Naquele mesmo ano de 2018, Samara relembra que “sentou no Pau da Bandeira” – outra simpatia feita por aquelas que desejam se casar – e bebeu o chá, feito da raspa da madeira. No ano seguinte, “a magia se fez”, brinca ela. “Conheci ele [esposo] em 2019, namoramos, depois noivamos e neste ano nos casamos”, diz. “Agora viemos agradecer”, completa Samara.
Quem também pretende voltar em 2023 para agradecer à Santo Antônio é a técnica em enfermagem Marciana Pires de Sousa. Durante a “Noite das Solteironas”, Socorro Luna reúne 13 mulheres que se autoentitulam ‘encalhadas’ e realiza uma simpatia inusitada: em um bolo de três andares, cujo topo está a imagem de Santo Antônio, 13 fitas são inseridas e, apenas uma, contém uma aliança.
De forma aleatória, as mulheres retiram as fitas do bolo em busca da alianças. Reza a crença popular que quem “escolher a fita certa” conseguirá um marido. “Por qual razão não acreditar?”, brinca. “Que ele me apresente um bom homem para próximo ano retornamos aqui em forma de agradecimento”, completa Marciana.
Como tudo começou?
Casamentos conquistados em nome da fé. Pedidos esperançosos à espera da realização matrimonial. São centenas de histórias que se confundem tendo como plano de fundo Santo Antônio. Mas, como surgiu todo esses misticismo? A professora do curso de Ciências Sociais da Urca, Renata Marinho Paz, estudiosa sobre a temática, explica que a tradição da “Noite das Solteironas” surgiu no fim da década de 1990.
“A advogada barbalhense Socorro Luna foi convidada para coordenar uma das noites da quermesse que é realizada durante a trezena de Santo Antônio. Para inovar, Socorro resolveu disponibilizar nesta noite o chá da casca do Pau de Santo Antônio para as moças que desejassem arranjar um marido. A inovação fez sucesso e acabou virando a Noite das Solteironas”, detalha.
Esse sucesso fez maximar o alcance da Festa de Santo Antônio, cuja programação contempla atrações ao longo de 13 dias, sendo as mais famosas o Pau da Bandeira e a “Noite das Solteironas”, momento em que marca a abertura dos Festejo, no sábado, dia 28.
“É um evento cuja importância vem se consolidando ao longo dos anos por estar associado diretamente à temática da festa. Por ser muito criativo e inusitado, contribui para dar mais visibilidade aos festejos”, destaca Renata.
Mudanças culturais
O cenário social vivenciado quando a festa começou a ser realizada difere do atual. Em mais de duas décadas, o papel da mulher na sociedade mudou, com importantes conquistas e ascensão social. Portanto, a imagem de outrora em que a mulher estava enviesada ao casamento, a ser dona do lar e provedora da família, sofreu forte mudança.
Deste modo, as tradições presentes na “Noite das Solteironas” também sofreram alteração? Renata Marinho observa que “um pressuposto básico da antropologia histórica é de que só permanece aquilo que muda”. Assim, completa a estudiosa: “pode parecer estranho, mas, como todo elemento cultural, a Festa de Barbalha pode ser considerada tradicional por ser constantemente reinventada”.
A professora e pesquisadora Simone Pereira da Silva, com doutorado em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF), concorda com a análise feita por Renata Marinho, e complementa que “a festa está sempre se reinventando, [por] fazer parte de sua essência dinâmica”.
“As demandas sociais se fazem presentes na festa mesmo que não estejam inseridas na programação oficial”, diz Simone Pereira, que realizou uma intensa imersão nos festejos de Santo Antônio, desde o surgimento da festa até suas ramificações culturais, como Pau da Bandeira e “Noite das Solteironas”.
Ela, inclusive, participou da comissão que desenvolveu um dossiê enviado ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) no processo que definiu, em 2015, o reconhecimento da festa como Patrimônio Cultural Brasileiro.
“Nos últimos anos tem sido constante a participação do movimento de mulheres do Cariri que, com o apoio e a participação das mulheres do movimento negro e de representantes LGBTQIA+, vêm expondo em meio aos festejos, uma série de reivindicações e demandas sociais que precisam de atenção”, acrescenta a pesquisadora.
Simone Pereira destaca, ainda, que várias alterações podem ser observadas ao longo dos anos, desde a mudança na paisagem territorial e cultural de Barbalha, “passando pela ressignificação e criação de novos grupos culturais”.
“Tais mudanças apontam para o contexto complexo, dinâmico, conflituoso, de negociações, concessões, reinvindicações, de construção de espaços de resistência, de autonomia, ao mesmo tempo em que atua como mecanismo de manutenção e afirmação do status, valores e preceitos”, analisa.
Papel da mulher
A aparição de manifestações desse tipo gera outras visões acerca do papel das mulheres na sociedade e na própria essência da festa, ressalta Simone. “Se os aspectos inerentes à masculinidade e patriarcalismo se sobressaem na maioria dos elementos que compõem a festa de Santo Antônio em Barbalha, a participação da mulher ainda se mantém sutil, mas não menos relevante”, diz.
A professora Renata Marinho acrescenta “que o próprio termo solteirona, mesmo sendo entendido como brincadeira, tem uma conotação pejorativa, ao remeter à ideia de uma mulher que não conseguiu cumprir o que a sociedade espera em relação ao matrimônio”. “Por que não se fala em solteirão?”, questiona.
Ainda quando se remete à conotação machista em que a Festa pode ter sido submersa, Renata lembra que a região do Cariri “infelizmente se destaca quando se fala de violências (no plural mesmo) contra a mulher, e é necessário sermos vigilantes para identificar e combater o machismo”.
A professora completa dizendo que “quando se pensa em uma festa como essa realizada em Barbalha, é preciso considerar que é um evento que envolve a participação de diferentes grupos de pessoas, com visões de mundo, interesses e posições muito variadas. Sendo assim, é inevitável perceber conotações machistas. Destaco especialmente as representações da mulher tendo que ‘apelar ao Santo’ para conquistar um marido”, conclui a docente da Urca.
Simone lança outra observação sobre a associação do Pau da Bandeira ao órgão sexual masculino, símbolo da virilidade. Conforme destaca, “mesmo no seu sentido que remete aos cultos, à fertilidade, traz nos dias de hoje uma reflexão a respeito dessa ideia do poder, de força, e da potência masculina dominante na festa”.
Essa “construção fálica que segrega a mulher a um papel de coadjuvante”, completa Simone, “ao mesmo tempo em que a uma cobrança as mulheres pelo matrimônio, se mantém como uma ideia de necessidade a fim de garantir a felicidade das mesmas”.
“Cobrança esta que não ocorre com os homens, que gozam da liberdade de viverem a vida sem serem o tempo todo taxados de encalhados, solteirões ou titios.”
Simone Pereira, professora e pesquisadora
Reinvenção
Diante desta constatação em que há conotações machistas, a festa passou por alguma reinvenção? A pesquisadora Simone Pereira diz que é preciso “se pensar que as questões relativas ao casamento e a solteirice decorrem de uma construção histórica nem sempre simpática à condição feminina, visto que essa cobrança social que recai sobre as mulheres para obtenção de casamento é por vezes compulsória (assim como a maternidade etc.)”.
“Em uma sociedade de constantes mudanças e sobretudo no papel das mulheres é mister que repensemos sempre como vamos significar os espaços que ocupamos. Sabemos que é recorrente, em um pensamento mais ‘conservador’ a ideia que mulher para ser feliz tem que está casada”.
“Mas é fato que isso vem mudando e, cabe-nos reforçar sempre outras perspectivas para a condição das mulheres e suas liberdades de escolha, seja quanto ao casamento ou qualquer outra coisa.”
Simone Pereira, professora e pesquisadora
Por André Costa
Fonte: Diário do Nordeste