Pelo menos uma vez por ano, em meio a Floresta Nacional do Araripe, centenas de pessoas se reúnem no dia 25 de janeiro para celebrar a festa (ou romaria) da Santa Cruz da Baixa Rasa, distrito de Crato. A pé ou a cavalo, o público estimado é de 2 mil fiéis — destes, 600 são vaqueiros. Alguns chegam a percorrer mais de 70 quilômetros no lombo do animal, vindo de cidades vizinhas e, até mesmo, do Pernambuco. Neste ano, que completaria sua 107ª edição, pela primeira vez esta tradição foi interrompida e deu lugar a uma celebração tímida, em família, por causa da pandemia da Covid-19.
O evento reconta a história de um homem que se perdeu na Chapada do Araripe e morreu de fome e sede.O corpo foi encontrado tempos depois em estado de decomposição. Alguns dizem que, em sonho, ele agradeceu a quem o enterrou, podendo descansar. Uns chamam de Antônio, de Francisco, outros de Paulo ou Pedro, mas não sabem quem era ou se, de fato, está sepultado no local. Dizem que foi um vaqueiro que saiu à procura de uma novilha na mata e nunca mais voltou, outros falam que ele se desprendeu de seu comboio, que seguia até o Pernambuco para trocar farinha e rapadura e não foi mais visto. Este episódio, provavelmente, aconteceu no final do século XIX.
O certo é que foi edificada uma cruz na Baixa Rasa, local onde supostamente o homem foi enterrado, que fica a cerca de 20 km da sede do Crato.
A peregrinação até lá surge a partir de uma senhora conhecida como Dona Pretinha que, sensibilizada com essa morte, fez uma promessa para livrar sua família de uma “peste” que acometeu a região no início no século XX, provavelmente a chamada gripe espanhola, que foi responsável por mais de 1 mil mortes no Cariri.
Nenhum parente de Pretinha foi atingido pela doença. A partir do dia 25 de janeiro, ela começou a celebrar um terço ao meio dia, aos pés da Santa Cruz da Baixa Rasa. Após sua morte, a família deu continuidade à devoção.
Mudança
Na década de 1970, a Festa passou a ter uma missa celebrada às 11 da manhã e foi se fortalecendo, passando a receber zabumbeiros e vaqueiros para animar o evento. Com o passar dos anos, este último grupo começou a dar uma nova roupagem a romaria, inclusive, resignificando a história. Agora, o túmulo da Santa Cruz se trata de um vaqueiro como eles, que morreu à procura da boiada, ao lado do cavalo e do seu cachorro. Aquela morte tão temida e dolorosa santifica o personagem que, hoje, intercede por estes ‘trabalhadores livres’.
A professora e historiadora Ana Cristina de Sales, explica que a devoção se dá, justamente, porque a morte, principalmente no século XIX, era um acontecimento que deveria ser acompanhado pela família. “As pessoas tinham uma hora para morrer e só estavam prontas quando velhos, no leito familiar. Então, essa morte foi sensibilizando a memória das pessoas do Cariri”, justifica.
Ao redor da Santa Cruz, pelo menos 12 túmulos se formaram por pessoas que queriam ser enterradas próximos ao santo popular. O lugar se tornou um cemitério no meio da floresta. Em 2015, a Festa da Santa Cruz da Baixa Rasa foi tombada como Patrimônio Material e Imaterial do Município.
O terço se mantém até hoje, organizado pelas bisnetas de Dona Pretinha. Esta, inclusive, foi a única celebração autorizada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), já que a cruz está fincada em uma Unidade de Conservação. Limitada a 15 pessoas, a reza realizada, ontem (25), não foi divulgada para não atrair espontaneamente um grupo de vaqueiros ou devotos.
“O cancelamento teve que acontecer para manter o isolamento social. Foi como os demais festejos, como o Dia de Reis, e como não poderemos fazer o carnaval. Mas é uma tradição que vai continuar”, pontua o secretário de Cultura de Crato, Amadeu de Freitas.
Fé
Ao longo desta centenária tradição, Ana Cristina não identificou nenhuma ruptura da festa, como aconteceu neste ano. “A promessa de dona Pretinha foi justamente para a continuidade da devoção, que por sinal já está indo para quarta geração”, pontua. Para a pesquisadora, o devoto da Santa Cruz, “em meio a essa pandemia catastrófica, com índices alarmantes de mortes por todo mundo, manifesta sua crença de outra forma. Não vai ao espaço sagrado, mas acende sua vela em casa, agradece as graças atendidas e pede por dias melhores”, acredita.
Neste ano, contudo, acredita que a chegada do coronavírus foi mais um motivo para o devoto “se conectar ao sagrado”, pondera a historiadora.
“O pedido pelo fim da pandemia, assim como Dona Pretinha pedia, no início do século XX, para ela e sua família não serem acometido por uma peste e tiveram seus pedidos alcançados”, completa a historiadora.
Reencontros
Logo cedo, centenas de vaqueiros se concentram no Bar do Wilson, no bairro Lameiro, por volta de 5h30 da manhã. Muitos chegam usando trajes tradicionais, como chapéu e gibão. Grupos políticos também se unem para subir a serra. O dono do estabelecimento serve um caldo por contra própria para que todos subam fortalecidos. O alimento virou uma tradição da romaria.
Às 8h, o grupo parte depois de rezar um “Pai Nosso” e uma “Ave Maria”, levando a imagem de Nossa Senhora Aparecida, protetora de todos os pobres e oprimidos, além de padroeira do Brasil. Outro santo cultuado é São Jorge, santo dos cavaleiros.
Boa parte dos vaqueiros do Crato participa ou já participou da celebração e trata a festa como um momento de fé e reencontros. Às 11 horas, os romeiros participam da missa, horário que chega um andor de São Sebastião, trazido pela família remanescente da criadora da romaria. Uma queima de fogos acontece após a liturgia. Grupos culturais como a Banda Cabaçal dos Irmãos Aniceto e o Reisado do Mestre Aldernir animam o evento, que também conta com dezenas de barracas de comidas. No retorno ao Lameiro, as comemorações, regadas a bebida no Bar do Wilson, continuam até o escurecer.
Pedidos
No caso dos vaqueiros, são comuns pedidos ligados às coisas do campo e aos cuidados dos seus cavalos. Alguns fazem promessa para vencer uma vaquejada, curar o casco do animal ou uma mordida de cobra. Entre eles, se repete a narrativa de lembrar do parceiro que foi “morto de fome e sede”, como representante da lamúria sertaneja. De certa forma, se assemelha a injustiça sofrida por Raimundo Jacó, assassinado “pela inveja”, como afirmava seu primo, Luiz Gonzaga, o “Rei do Baião”, que em sua homenagem criou a Missa do Vaqueiro, em Serrita (PE).
Dor
A interrupção, em 2021, afetou profundamente o vaqueiro Raimundo Procópio, que logo cedo mandou um áudio para o grupo de vaqueiros amigos, no aplicativo WhatsApp, que reúne desde parceiros dos distritos de Ponta da Serra, Santa Fé, Dom Quintino, Monte Alverne e até mesmo de cidades, como Juazeiro do Norte, Barbalha, Missão Velha e Exu.
“Hoje era para estar realizando a grande cavalgada, mas, primeiramente a Deus, temos que rezar para tomar essa vacina e quando for no ano que entra a gente faz duas cavalgadas em uma só”, disse o vaqueiro Raimundo visivelmente emocionado.
À nossa reportagem, Procópio, confessa que nunca imaginou viver um momento como este, já que participa do evento desde criança, disse que “Deixa muita falta a muita gente. Uma hora dessa, estaria chegando na descida do Lameiro. Isso é para a gente ver que o dono do mundo é Deus. Essa pandemia é para mostrar isso. Dinheiro não compra felicidade. Mas com fé em Deus e no Padre Cícero, isso melhora”, pontua.
Repartindo da mesma tristeza, a vaqueira Natália Gonçalves, filha de vaqueiro e que compartilha com suas irmãs Regilane e Roberta e com sua sobrinha Yara a mesma paixão pela cavalgada, admite a dor pela ausência da festa: “Uma falta muito grande. Já é uma tradição. Hoje foi um dia que ficou aquela ansiedade, mas não pode ir. Mas com Deus na frente, no próximo ano estaremos”, completa.
“Para os vaqueiros que celebram a Santa Cruz, hoje é um dia triste por não estarem juntos fazendo o cortejo e levando as imagens de Nossa Senhora Aparecida e São Jorge”, reforça Ana Cristina. Contudo, a pesquisadora afirma que além de um momento de fé, a festa é propícia a interação e reencontros, unindo o próprio sagrado e profano. “Diversos homens e mulheres se expressam e compartilham experiências novas”, finaliza.
Por Antonio Rodrigues
Fonte: Diário do Nordeste