Sob o forte sol ou debaixo da intensa chuva. A condição meteorológica não é determinante para definir quando os catadores do Lixão de Juazeiro do Norte, no Cariri cearense, vão trabalhar. “Cada dia parado representa menos dinheiro no bolso”, alerta José Oliveira, que há oito anos extrai do lixo o dinheiro para sustentar a esposa e a filha de 14 anos.
Joca, como é conhecido pelos colegas, divide espaço com dezenas de catadores, que diariamente se misturam às montanhas de resíduos em busca de algo que possa ser trocado por dinheiro. “Nossa missão aqui é catar o lixo que pode ser reciclado. Plástico, ferro, cobre, tudo isso serve”, explica Joca.
Para pinçar todo esse material, os quase 100 catadores se expõem a saúde aos mais diversos riscos. A maioria deles trabalha sem nenhuma ferramenta de segurança, como o Equipamento de Proteção Individual, o chamado EPI. Máscaras faciais, luvas, respiradores, macacões e calçados fechados, nenhum desses equipamentos, que são de uso obrigatório por lei em atividades de risco, faz parte do cotidiano desses trabalhadores.
“Nunca tivemos”, conta Cláudio Ribeiro da Silva, o Claudinho. Ele afirma que “a Prefeitura chegou a prometer entregar os equipamentos para nós (catadores), mas a promessa nunca foi cumprida”. E custear a compra do material com recursos próprios, ainda segundo ele, é inviável. “A gente mal tira o sustento da família, não sobra pra comprar essas coisas”, acrescenta.
O mesmo cenário insalubre se repete em vários outros lixões do interior cearense, como são os casos de Caririaçu – cidade vizinha a Juazeiro do Norte – e Iguatu, distante quase 155 km. “Apesar de ser ilegal e extremamente nocivo à saúde dessas pessoas, não há o cumprimento da lei. Os EPIs são de uso obrigatório, mas, na prática, ninguém usa. E o motivo é muito claro: eles não são distribuídos. Se os gestores dos municípios não fornecem, os catadores obviamente ficarão sem acesso”, alerta o biólogo e ativista Félix Maciel Silvestres.
Na prática, é exatamente isso que acontece em diversos lixões do Estado. Em Caririaçu, a catadora Maria Rosa Batista diz ter perdido as contas de quantas vezes já se feriu catando os dejetos. “Tenho mais cortes do que idade”, brinca a catadora de 36 anos que se protege, assim como tantos outros, de forma improvisada. “Enrolo uma camisa na cabeça para proteger do sol, coloco umas luvas que meu marido usava para tirar abacaxi, ponho óculos escuro e vou para a luta”, descreve Rosinha.
Em Iguatu, principal cidade da região Centro-Sul do Estado e que produz 8 toneladas de lixo doméstico por mês, a mesma irregularidade se estende aos quase 50 catadores – em sua maioria, mulheres. A presidente da Associação de Catadores de Materiais Recicláveis de Iguatu, Rosimeire da Silva Lima, confirma que “ninguém tem equipamento de proteção”. Apesar de reconhecer os riscos, ela conta que os EPIs “nunca foram fornecidos”.
A Prefeitura de Iguatu contesta a informação e afirma “ter entregue kits, em outubro de 2018, à Associação, contendo botas, calças, camisas e luvas”. O secretário de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano de Iguatu, Marcos Ageu Medeiros Soares, acrescentou ainda que uma “nova remessa de EPIs será entregue no próximo mês, quando daremos início a um projeto piloto de coleta seletiva”. Já as prefeituras de Juazeiro do Norte e Caririaçu não responderam aos questionamentos.
Danos
A médica Luana Costa alerta para os malefícios de exercer essa atividade sem a proteção adequada. “Essas pessoas estão expostas diariamente a riscos biológicos, quando há contato com lixos hospitalares e de laboratórios; aos físicos, pois elas podem se cortar com algum objeto infeccioso; e aos riscos químicos, pois alguns rejeitos expelem fluídos corrosivos”, detalha Luana. Dentre as morbidades mais frequentes, advindas do contato humano direto com o lixo, a profissional aponta as doenças diarreicas e aquelas transmitidas por vetores biológicos e mecânicos.
Sobrevivência
Encarar diariamente esse ambiente insalubre, estando expostos aos mais diversos riscos e tendo, ainda, que conviver, lado a lado, com a presença de urubus é, segundo eles, uma necessidade e não uma opção. Pedro Gusmão trabalhou como soldador durante três anos em uma indústria na região do Cariri. Desempregado há dois anos, decidiu tirar do lixo o sustento da família.
“Por mais que eu buscasse, não conseguia emprego, então entrei nessa vida”, relata, ao lembrar o início difícil. “No começo, a gente pensa que não vai aguentar. O cheiro é muito forte, o sol é escaldante e a gente tem que ficar brigando com os urubus, eles estão por toda parte. É um trabalho duro, mas que por necessidade a gente tem que encarar”, conta o catador que consegue, ao fim de cada mês, tirar em média R$ 800.
A 160 km de distância do lixão de Juazeiro, estão outros 50 catadores que ganham a vida no lixão de Iguatu, com renda mensal nesta mesma faixa. Maria Regina Barbosa não tem estudo e deixou o serviço de empregada doméstica para catar lixo. “O expediente aqui começa cedo, por volta das 7 horas. A gente se baseia na hora em que chegam os carros de lixo. São eles que trazem o nosso ganha-pão”, diz a mulher que apura, em média, R$ 500 a R$ 600 por mês.
Futuro incerto
No início do ano, Regina e as outras catadoras de Iguatu receberam a notícia de que o local onde elas trabalham iria acabar. “A gente já ouviu muita essa história, mas nunca se concretiza”, pontua Maria. Desta vez, porém, o futuro – e as promessas de adequar o local em conformidade com a lei – parece estar alicerçado em um projeto sólido.
Sete municípios do Centro-Sul cearense formalizaram a criação de um consórcio de gestão integrada de resíduos sólidos, sob a articulação da Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema). O consórcio deve atender aos requisitos da Política Nacional e Estadual de Resíduos Sólidos para preservação do meio ambiente. O município de Iguatu foi escolhido para sediar a gestão deste consórcio, que prevê a construção de centrais municipais de resíduos em cada município e ‘ecopontos’ para entrega voluntária.
As primeiras atividades do Consórcio começam a ser postas em prática no próximo mês, com a implantação de coletas seletivas em dois bairros do Município (Cajazeiras e Chapadinha). De acordo com Marcos Ageu, “a previsão é de redução de cerca de 70% de todo o material que vai para o lixão”. Os 30% restantes configuram-se apenas em rejeitos sem valor comercial. Com essa redução, a expectativa é que os lixões das cidades consorciadas (Iguatu, Acopiara, Catarina, Cariús, Quixelô, Jucás e Saboeiro) sejam fechados total e definitivamente.
Em Iguatu, a previsão é de pôr fim ao local já no próximo ano. Com a implantação do Consórcio, todos os catadores que hoje estão registrados passarão a trabalhar nos ecopontos e nas Centrais de Resíduos. “Caso aconteça mesmo, será algo importante”, avalia Rosimeire da Silva. “Passaremos a ter um trabalho mais digno, em condições humanas”, acrescenta a presidente da Associação de Catadores de Iguatu. As prefeituras de Juazeiro do Norte e Caririaçu não se manifestaram quanto à desativação dos lixões de suas respectivas cidades.
Por lei, todos os lixões em território nacional eram para ter sido substituídos por aterros sanitários desde 2014. Foi este o prazo estabelecido pela lei de Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), de 2010.
Por André Costa
Fonte: Diário do Nordeste