Luiz Gonzaga cantou, Patativa do Assaré poetizou e Padre Cícero doutrinou. Todos eles e muitos outros que vieram antes de Alemberg Quindins usaram expressões diferentes para alcançar, talvez, o mesmo propósito evocado hoje pelo gestor cultural cratense: o reconhecimento da Chapada do Araripe, que inclui Ceará, Pernambuco e Piauí, como Patrimônio da Humanidade. “Eu sou mais um que fala. E tive a sorte de ter pessoas à frente de uma instituição que tem condições, que é a Fecomércio, de me ouvir, de acreditar em mim”, enfatiza o idealizador da Fundação Casa Grande.
A afirmação veio acompanhada da realização de um Seminário Internacional em três cidades do Cariri cearense – Juazeiro do Norte, Crato e Nova Olinda, de 6 e 9 deste mês. Participaram representantes de instituições federais e pesquisadores com trabalhos conceituados dentro e fora do País. Eles traçaram metas a serem atingidas a curto, médio e longo prazos para a concretização do objetivo.
Uma pergunta inquietante, feita pela chefe de Divisão de Reconhecimento Internacional de Bens Patrimoniais do Iphan, Candice Ballester, norteou as atividades: afinal, por que ser Patrimônio da Humanidade?
E foram os próprios atores sociais os convidados a respondê-la, formalmente, em discursos, ou nas dinâmicas de apresentações artísticas e inaugurações de três museus orgânicos nos municípios anfitriões do Seminário. A questão principal, como bem explicou Candice, é que o título, antes de ser algo que vem de fora, nasce como uma provocação interna de quem o deseja. Por isso mesmo, precisa ser devidamente compreendido pelos homens e mulheres da Chapada, protagonistas dessa construção.
“Não se trata de uma faixa de miss. É um compromisso internacional de conservação e preservação desse patrimônio, e isso exige muito mais que um dossiê”, diz.
As respostas que deram sequência a esse questionamento foram dignas da diversidade natural, cultural e paleontológica, única frente às outras candidaturas, como mais tarde viria a salientar a própria Candice. “Nós já somos Patrimônio da Humanidade”, bradariam todos em convergência, transformando o seminário numa reafirmação da identidade regional.
Ideia
Mais do que um acordo do povo, este reconhecimento foi sugerido por Alemberg Quindins como um compromisso com a história da terra. “A Chapada, durante todo o movimento do planeta, manteve-se perene e sendo um ponto de destaque onde está. O Rio São Francisco já foi aqui, e mudou o curso quando ela foi soerguida. Nós temos registros dos animas mais longínquos. Há 3.300 anos A.C., o homem já estava em torno da Chapada, fazendo cerâmica, dançando, fazendo pintura rupestre, com toda uma formação cultural já organizada. Então, temos aqui um tesouro vivo”.
E a vontade do próprio Alemberg de contar isso para o mundo surgiu ainda na infância, quando ele “ouvia” e “se via” nas lendas sobre a região contadas por uma mulher indígena do Cariri; e também anos depois, já com a companheira, a arqueóloga Rosiane Limaverde (1964-2017), ao deparar-se com o desconhecimento das pessoas sobre a importância histórica daquele platô. “Um dia, eu olhei para a Chapada e tive uma intuição: ou aqui já aconteceu uma coisa muito grande ou está para acontecer”. E por que não os dois?
“A gente sempre acreditou e eu digo que o Cariri é um estado de espírito onde o vento sopra com saudade do mar. Essa frase, quando diz o estado de espírito, o estado é o território, o espírito é a cultura, e o vento que sopra com saudade do mar é, trazendo toda uma antiguidade paleontológica e geológica, que o mar já esteve aqui. Então, essa é a nossa força”.
Foi essa reflexão que levou o gestor, no fim de 2017, a Portugal e Marrocos a fim de entender a dinâmica da candidatura a Patrimônio e de gestar o Seminário ao lado de parceiros como a professora Maria da Conceição Lopes, diretora nacional do Centro de Estudos em Arqueologia, Artes e Patrimônio da Universidade de Coimbra e uma das principais vozes a favor desse reconhecimento mundial.
Desafios
O processo que pode culminar no título almejado, porém, não escapa das burocracias das instituições, e esbarra numa série de fatores detalhados nas falas de Candice Ballester e do representante do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos), Júlio Sampaio. Com autenticidade, integridade e universalidade garantidas, a Chapada do Araripe deixa a desejar em outros aspectos dentro dos parâmetros internacionais.
O primeiro deles é a falta de reconhecimento no próprio País. O único bem imaterial da Região registrado junto ao Iphan, por exemplo, é a Festa do Pau da Bandeira de Santo Antônio de Barbalha, cuja candidatura levou cinco anos para ser aprovada, entre 2010 e 2015. “Convencionou-se nacionalmente que a gente só apresenta um bem ao reconhecimento internacional quando ele já é reconhecido nacionalmente”, explica Candice. Esse é um dos entraves a serem resolvidos, inclusive no âmbito estadual.
A principal vantagem se dá com o título do Geopark Araripe como o primeiro parque geológico das Américas reconhecido pela Unesco. Essa chancela internacional eleva as possibilidades da candidatura, mas há muito a caminhar. Inclusive para incluir a Chapada na lista indicativa do Iphan, que só costuma ser revista a cada dez anos. A última revisão foi em 2015.
“É preciso primeiro apresentar ao Iphan uma solicitação, reunindo informações e argumentações técnicas, para que a gente possa rever a inclusão da candidatura da Chapada e região do Cariri, que ela componha a lista indicativa brasileira porque se não estiver nessa lista e aprovada previamente para constituir uma candidatura com a Unesco, a gente não existe, não tem nem como iniciar nenhum procedimento”, pontua Candice.
Para a efetivação desse processo, ela orienta a constituição de um grupo de trabalho interdisciplinar, interinstitucional, com a participação da sociedade civil, para constituir o locus dessa proposta de candidatura; e, em seguida, a elaboração de um plano de trabalho, no qual entrariam um cronograma e a atribuição de papéis. Foi dessa forma que os participantes do Seminário se comprometeram ao assinarem uma carta no fim do evento.
Parcerias
O presidente da Fecomércio, Maurício Filizola, foi um deles. “Temos que adequar toda essa ambiência às regras para tornar efetivo o resultado final. É só uma questão de alinhamento e, com toda certeza, o sistema Fecomércio, por meio do Sesc e do Senac, vai dar todo apoio para a continuidade de todo esse processo que está se desenhando pela frente”.
O Secretário Estadual da Cultura, Fabiano Piúba, também sinalizou o apoio do Governo do Estado. “Comprometemo-nos com uma parte do orçamento da LOA 2020 e do Plano Plurianual 2020-2023 para viabilizar a elaboração do dossiê, estabelecendo as articulações institucionais com os governos de Pernambuco e Piauí, instaurando as articulações com as prefeituras municipais, promovendo mesas de trabalhos com especialistas e viabilizando a aprovação do registro do Cariri como patrimônio pelo Conselho Estadual do Patrimônio Cultural. O fato é que o governador Camilo Santana, que é um homem do Cariri, está muito animado e vai se envolver pessoalmente com esse projeto”.
Para Candice, o diferencial dessa candidatura é trazer algo que já está posto. A base dela, o coração é o que é feito aqui, que tem um reflexo enorme na comunidade e na sustentabilidade desse patrimônio”.
Tanto ela quanto os demais participantes do Seminário têm a dimensão de toda essa história que já existe, mas precisa ser contada de forma diferente aos ouvidos do mundo.
Nesse sentido, fez-se a opção por contá-la a partir dos preceitos da Convenção da Unesco de 1972, reconhecendo a Chapada do Araripe como patrimônio cultural e natural, portanto um bem misto, a exemplo de Paraty/Ilha Grande, cujo título veio no último mês de julho, após uma década na tentativa, mas com o diferencial do acervo palentológico do Cariri.
Sobre essa questão temporal, Candice Ballester é otimista: “O processo dos demais bens que a gente tem reconhecido como patrimônio mundial da Unesco no Brasil não duraram tanto tempo. Isso depende justamente dessa articulação local. E como eu tô vendo que tá tendo todo um movimento extremamente positivo, um processo que se inicia mais sólido, consolidado, acredito que não será tão demorado”.
Acima de tudo, ela enxerga na candidatura uma grande oportunidade “pra gente fazer um pacto compartilhado. Ganhamos muito nesse processo e, independentemente de sermos reconhecidos ou não, porque todo esse potencial, de instituições se unirem para pensar numa proposta e aportar recursos financeiros, humanos, técnicos, já é extremamente positivo”, conclui.
O Padre Cícero de um só Cariri
“Qual Padre Cícero vamos colocar no dossiê? O renegado pelo Crato ou o reverenciado por Juazeiro?”, perguntou um dos participantes do Seminário Internacional Patrimônio da Humanidade Chapada do Araripe após mesa dedicada ao “Padim” no imaginário simbólico do Cariri. A ele, Alemberg Quindins, idealizador do movimento, respondeu: “Só existe um Padre Cícero e o Crato está dentro dele”.
O sacerdote cratense e fundador da vizinha Juazeiro do Norte, que obteve prestígio e influência sobre a vida social, política e religiosa da região foi reconhecido pelos presentes como personagem histórico “absolutamente inserido na candidatura da Chapada do Araripe como Patrimônio Mundial.
“Padre Cícero foi o grande cacique, o último dos caciques Cariri, e ele resgatou todas as migrações para a região da Chapada, usando a estrutura da Igreja. Até um dia em que a Igreja desconfiou e expulsou ele, porque notaram que não era um apóstolo de Roma, mas o apóstolo de um povo”, diz Quindins. A força que essa imagem evoca, mesmo 85 anos depois de sua morte, sem dúvidas, será motriz.
SEMINÁRIO INTERNACIONAL PATRIMÔNIO DA HUMANIDADE CHAPADA DO ARARIPE
Objetivo: Tornar a Chapada do Araripe (que inclui a região de Ceará, Pernambuco e Piauí) Patrimônio Mundial na categoria mista – natural e cultural
Premissa: Convenção do Patrimônio Mundial, Cultural, Natural e Misto de 1972
Desafios: Obter mais registros para os bens materiais e imateriais da região junto ao Iphan nacional; e incluir a Chapada do Araripe na Lista Indicativa Brasileira da proposta de candidatura a Unesco
Encaminhamentos: Formação de um grupo de trabalho, interinstitucional, envolvendo as três instâncias governamentais e sociedade civil; e realização de um plano de trabalho para a elaboração da candidatura
Por Roberta Souza
Fonte: Diário do Nordeste