Há exatos quatro anos, no dia 10 de outubro de 2017, um seminário era realizado no Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, em Crato, como pontapé inicial das discussões para transformá-la em uma unidade de conservação (UC) e, futuramente, um geossítio que integrasse o Geopark Araripe.
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Apesar de sua importância histórica, de lá para cá, o assunto pouco avançou. O local, que é alvo de devoção e visitas, principalmente em setembro, recebe poucas pessoas e não oferece uma estrutura atrativa.
Com o seminário “Caldeirão da Santa Cruz do Deserto: uma construção coletiva”, que contou com a participação do secretário de Meio Ambiente do Ceará, Artur Bruno, o debate pela criação da UC ganhou força, a partir de 2017.
A Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Territorial de Crato (SEMADT) chegou a concluir o georreferenciamento da área, que pertence à Prefeitura de Crato, em 2018.
A criação da nova UC, até então, ficaria a cargo do município, que cogitava a instituição de um Monumento Natural de Interesse Cultural e Ambiental, classificação destinada para a preservação de lugares singulares, raros e de grande beleza cênica, permitindo diversas atividades de visitação. Com a pandemia, o processo estagnou.
Nivaldo Soares, diretor-executivo do Geopark Araripe, admite que a chegada da Covid-19 atrapalhou, mas o processo de definição da área que faz parte de sua propriedade, ação da prefeitura, foi lento.
Geologia, Cultura e História
De qualquer forma, a SEMADT apresentou a planta, que soma cerca de 228 hectares no Caldeirão. “Nós, por outro lado, tivemos o trabalho de realizar inventário da área, não só geológico, mas os aspectos ligados à cultura e história, elementos que fazem parte da criação de um geossítio”, detalha.
O município ficou de enviar ao Geopark o perímetro, planta e, dentro dela, definir a área trabalhada com o geossítio. Com o processo paralisado, a Secretaria de Meio Ambiente do Estado (Sema) decidiu participar, diretamente, da criação de cinco unidades no Cariri, dentre elas, o Caldeirão da Santa Cruz do Deserto.
A gestora da Conservação da Diversidade Biológica (Cedib/COBIO) da Sema, Andréa Moreira, explica que o Estado firmou uma parceria com a Universidade Regional do Cariri (Urca) para elaborar os estudos técnicos de cinco unidades. Além de Crato, serão beneficiadas as cidades de Juazeiro do Norte, Barbalha, Santana do Cariri e Lavras da Mangabeira.
No caso do Caldeirão, já foi entregue à pasta o primeiro produto, no caso, o plano de trabalho, que apresenta o cronograma junto ao Caldeirão. “De início, acredito que até março e abril de 2022, os estudos estejam completos, com realização de consulta pública e proposta final”, projeta.
Após pensar, a partir dos dados cartográficos e bibliográficos, serão definidos os limites da nova unidade e seu plano de manejo. O processo vai passar, não só pelas mãos de pesquisadores, mas aberto à participação da população.
Após tudo isso, deve chegar à Casa Civil e ser criada, por meio de decreto, assinado pelo governador do Estado, a nova unidade de conservação. A projeção é que o processo seja concluído em 2022. “A gestão será estadual, mas com participação paritária de 50% governamental e 50% da sociedade civil”, detalha Andrea.
Com a criação da UC, Nivaldo acredita que haverá poucas dificuldades para a inclusão do Caldeirão como geossítio. “É mais difícil estabelecer o reconhecimento de um Geopark que agregar novas áreas, ainda mais a incorporação de um que já está no nosso terrório”, explica.
A área do geossítio será menor que a da unidade, integrando entre três a dez hectares. Segundo Nivaldo, o local apresenta afloramentos do cristalino, que chamam atenção pelos paredões de pedras e grandes blocos. Além da questão geológica, a fauna e a flora trazem características interessantes.
“Lá, por não ter muito desmatamento, área de plantio, mantém espécies da caatinga como tatu e veado. Com relação à flora, resistem espécies de árvores como a umburana, que é muito utilizada no artesanato e acaba sendo uma madeira muito perseguida”, exemplifica.
Memorial
Em maio deste ano, a Secretaria de Cultura de Crato apresentou a proposta de criar um memorial no Caldeirão. Lá, vizinho à Igreja, há um prédio construído pela prefeitura na última década que serve de apoio durante a Romaria, em setembro, e que seria adaptado.
De acordo com o titular da pasta, Amadeu de Freitas, o projeto já está em estudo e foi apresentado à Secretaria de Cultura do Ceará (Secult). “A ideia é ter o maior número de parceiros”, explica.
Segundo Amadeu, foi instituído um grupo de trabalho entre representantes da Urca, Secult e a sua Secretaria para elaborar um projeto. Na semana passada, o grupo apresentou o primeiro documento para estruturar o Memorial, contendo a reforma do prédio do museu e a constituição de uma comissão na área de história para elaborar a narrativa do Caldeirão.
“Ela seria base para o projeto expográfico do museu. A partir dele, também faremos trabalho de catalogação e busca de objetos que possam contar esta história”, detalha Amadeu.
Numa ideia mais audaciosa, o secretário projeta um trabalho de prospecção para tentar encontrar, naquela área, outros vestígios da passagem da comunidade. “Evidenciar objetos, ritos daquele local”, completa. Contudo, neste momento, a prioridade é tirar do papel propostas que valorizem o Caldeirão.
“Dentro entra obra de pavimentação do acesso, estruturação do local para receber visitas, gestão dos equipamentos como a capela, a casa, as ruínas do casarão do Beato.”
Amadeu de Freitas, secretário de Cultura de Crato
Visitas todos os dias
A família de Raimundo Batista, 77, é a única que se mantém morando no Caldeirão. Hoje, na sua visão, o local carece de visitantes e, por causa da pandemia, a procura diminuiu muito. “Mas aqui não tem sábado, domingo ou segunda. Aparece em qualquer dia, seja do Pernambuco, Paraíba, Piauí”, descreve.
Em setembro, a comunidade recebe milhares de visitantes na chamada Romaria da Santa Cruz do Deserto. Sua 20ª e última edição aberta ao público, em 2019, reuniu cerca de 3 mil pessoas. O evento foi criado por entidades eclesiais de base, pensando em resgatar a história de uma comunidade “de certa forma abafada”, confessou o padre Vileci Vidal, um dos idealizadores.
Este ano, por causa da pandemia, assim como em 2020, foi realizada uma pequena missa reunindo as entidades de base, movimentos sociais e comunidades próximas. Projetando o retorno de visitantes, Vileci acredita que os projetos para o Caldeirão agregarão à comunidade.
“A memória do Caldeirão é um dos aspectos mais importantes da história regional, sobretudo quando falamos de política do bem comum, do protagonismo dos camponeses, na experiência de reforma agrária”, ressalta o sacerdote.
O massacre do Caldeirão
No dia 11 de maio de 1937, as Forças Armadas e a Polícia Militar do Ceará, sob ordem do Governo Federal, invadiram a comunidade do Caldeirão da Santa Cruz, em Crato. Parte dos seus moradores foram mortos e os sobreviventes expulsos de suas terras. Seu líder, o beato José Lourenço, e seus seguidores fugiram.
Sua história começou no final do século XIX, quando o agricultor José Lourenço Gomes da Silva, peregrino paraibano, migrou até Juazeiro do Norte e se tornou um beato de confiança do Padre Cícero. O sacerdote arrendou uma terra do Sítio Baixa Dantas, em Crato, onde José e os flagelados que chegassem ao Cariri pudessem prosperar na agricultura comunitária e na fé. E assim aconteceu até 1926, quando as terras foram vendidas.
Depois disso, o Padre Cícero cedeu uma de suas propriedades na fazenda conhecida como “Caldeirão dos Jesuítas”, local que teria sido esconderijo dos jesuítas no século XVIII, onde recomeçam o trabalho comunitário com base na religião. Liderados pelo beato José Lourenço, lá, a produção era dividida igualmente e o excedente era vendido para compra de outros produtos, como remédios e querosene.
A seca de 1932 é lembrada, tanto na literatura como na oralidade, como uma das mais perversas que castigou o Nordeste na primeira metade do século XX. Foi esse fenômeno de escassez de água e alimento impulsionou o crescimento do Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, que chegou a receber 1.700 pessoas.
Temendo que a comunidade se tornasse um movimento messiânico, o Governo Federal, ordenou, em setembro de 1936, a primeira invasão à comunidade, que foi dispersada por forças policiais. Em 11 de maio de 1937, dessa vez foram as Forças Armadas, que bombardearam e destruíram a comunidade. Nove anos depois do episódio, José Lourenço morreria em Exu, vítima da peste bubônica.
“O Caldeirão ofereceu alimentação para as pessoas que chegaram, tempo que aumentou a população, se vivia com cuidado para não deixarem morrer, passar fome, manter a espiritualidade integrada com a luta com a terra. Eram pessoas marginalizadas, refugiadas, buscando reintegrar a sua espiritualidade, fugindo do cangaço. Uma comunhão integrada no campo social, político e social”, finaliza Vileci Vidal.
Por Antonio Rodrigues
Fonte: Diário do Nordeste