Se, por um lado, a chegada das águas do rio São Francisco ao Ceará foi motivo de comemoração, por outro seu processo foi doloroso para muitas pessoas do Sertão. Dezenas de famílias foram desapropriadas para dar lugar a canais, túneis, sifões, barragens e outras estruturas. E, para piorar, 748 famílias aguardam há três meses o recurso do governo federal a que têm direito.
Algumas dessas famílias foram reassentadas nas Vilas Produtivas Rurais (VPR’s), onde, mensalmente, deveriam receber o valor de um salário mínimo, chamado verba de manutenção temporária (VMT), pago até serem entregues lotes irrigados com recurso hídrico do próprio “Velho Chico”.
Porém, há mais de 90 dias o recurso não é repassado às quase sete centenas e meia de famílias que moram nas 18 vilas foram construídas. Como a grande maioria composta por agricultores que não tem condições ou terra para produzir, esse dinheiro é sua única fonte de renda. Em plena pandemia, padecem de ajuda de vizinhos e familiares para sobreviver.
“Não tem dinheiro, mas já está na planilha”
Na VPR Vassouras, em Brejo Santo, onde mora o agricultor Alexandre Silva, 145 famílias aguardam o pagamento. A última vez que recebeu o valor foi janeiro. Fevereiro, março e abril não foram repassados. “A gente entrou em contato e procurou saber. Disseram que ainda não sancionou e que não tem dinheiro, mas já está na planilha”, conta, em referência ao impasse na aprovação do orçamento no governo federal.
Antes da pandemia, muitos moradores da vila ainda conseguiam trabalhar. Atualmente, entretanto, a maioria sobrevive dessa verba. “Alguns agora estão vivendo de doação de cesta básica. E não é só aqui. Nesta semana fizemos uma reunião com representantes de todas as 18 vilas e todas elas estão assim”, conta Alexandre.
Também moradora de Vassouras, a agricultora Maria das Dores Bezerra enfrenta dificuldades. Antes de ser desapropriada e reassentada na vila, morava às margens do Riacho dos Porcos, onde ainda mantém suas terras, mas sem qualquer produção.
“É difícil o acesso. Ficou distante ir para a terra. Nós, que somos mães solteiras, não temos como trabalhar longe ou pagar uma pessoa para produzir. Temos terra, mas não temos como trabalhar porque ficou distante”
Maria das Dores Bezerra, agricultora
Lá, cada família terá direito a um lote de aproximadamente quatro hectares, que serão irrigados com as águas do Projeto de Integração do Rio São Francisco (Pisf), que passam ao lado, mas, ainda depende da construção de adutoras.
“Não tem nada pronto. Não tem por onde a água chegar na nossa comunidade. São cinco quilômetros. A área para os lotes ainda está na mata bruta”, descreve Alexandre.
Sem acesso aos terrenos
Os moradores das vilas ainda têm uma área com cerca de meio hectare para funcionar como um quintal produtivo, mas é insuficiente para o sustento. Maria das Dores. conta, inclusive, que nem mesmo sabe onde ele fica. “Não sei nem onde é porque está na mata. Não sei nem onde fica e ninguém veio dar explicações. Agora, vivo com ajuda”, completa.
A agricultora lamenta: “Prometeram uma vida melhor para a gente, porque a gente morava na beira do rio e tinha trabalho de inverno à seca. Tinha como se manter. Não só eu como os demais. Agora, estamos sem produzir”.
Morador da VPR Malícia, no município de Penaforte, Damião José Vieira compartilha das mesmas dificuldades de outras famílias reassentadas: “Estamos no sufoco. Alguns têm bicos, mas tem outros que não têm de jeito nenhum”, reforça.
Com a pandemia da covid-19, as dificuldades para encontrar trabalho são ainda maiores. “O homem da roça vive da roça. Aqui, não pode nem desmatar o lote até receber o documento definitivo. É triste. E tem pessoas piores do que eu”.
Situação ‘grave’
O geógrafo Liro Nobre, que pesquisa os conflitos pela água na região do Cariri, classifica a situação das vilas produtivas como “grave”. Ele lembra que a maioria das famílias reassentadas conquistam seu sustento da terra. Alguns, que moravam às margens dos rios, tirando até duas safras ao ano com acesso que tinham ao recurso hídrico.
“Fora também a identidade territorial. Elas foram afetadas, deslocadas e tiveram suas vidas profundamente alteradas. Hoje, dependem desse dinheiro”, acredita.
Até terem seus lotes entregues pelo governo federal, a contrapartida do Estado seria o pagamento deste salário mínimo. Com as terras, Liro acredita que as famílias poderiam produzir e reconstruir um novo vínculo. “Ainda assim, muitos saíram para uma terra fraca, sem a mesma fertilidade”, destaca.
“O que poderia ser, de alguma forma, um alento, era a chegada das águas do São Francisco. Além de depender do dinheiro, elas são submetidas a regras: não pode criar todo tipo de animal, construir uma casa extra para um parente, um armazém”
Liro Nobre, geógrafo
Ministério admite atraso
Em nota, o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) admitiu o atraso no pagamento da VMT. De acordo com a pasta, isso decorre da Lei Orçamentária Anual (LOA) 2021 ainda não ter sido sancionada. No entanto, não deu um prazo para a regularização da situação.
Já sobre os lotes irrigados que serão entregues aos moradores reassentados, o MDR afirmou que está em andamento o processo de licitação para suas implementações. A previsão é que a empresa responsável seja contratada até o final do primeiro semestre de 2021.
Por Antonio Rodrigues
Fonte: Diário do Nordeste