Imagine uma cidade sem semáforo, guarda de trânsito ou faixa de pedestre. Essa que parece ser uma realidade distante em pleno século XXI é mais presente do que supomos. No Ceará, 45% das cidades não possuem o trânsito municipalizado. São 81 cidades que não integram o Sistema Nacional de Trânsito (SNT) e, portanto, não têm adesão às normas previstas no Código de Trânsito Brasileiro, vigente desde 1998.
As implicações desta não adesão são inúmeras. Com o trânsito desordenado e sem qualquer fiscalização, cresce o número de acidentes, sobretudo os que envolvem motocicletas. A consequência imediata, além do dano à vida, são hospitais sobrecarregados. No Hospital Regional do Cariri (HRC), dos 2.510 atendimentos a vítimas de trânsito no ano passado, 64% foram a motociclistas.
Na tentativa de reverter este cenário e avançar no processo de municipalização, o Ministério Público no Ceará (MPCE) vai retomar, no próximo mês, o Projeto Municipaliza. A iniciativa, lançada no fim de 2018, teve de ser descontinuada durante a pandemia por impossibilidade de os interlocutores visitarem, em caravana, as cidades do Interior.
O programa, cujo objetivo é angariar a adesão de novas cidades externando a importância da municipalização, tem parceria da Associação dos Municípios do Estado do Ceará (Aprece), Departamento Estadual de Trânsito (Detran-CE), Conselho Estadual de Trânsito (Cetran) e Tribunal de Justiça do Estado do Ceará (TJ-CE).
Desafios
Para especialistas ouvidos pelo Diário do Nordeste, há alguns gargalos que explicam esse alto número de cidades sem integrarem o Sistema Nacional de Trânsito. O diretor de Educação de Trânsito do Detran, Ubiratan Teixeira, aponta o primeiro deles. “A maioria dos gestores [municipais] justifica a não implantação devido aos custos de investimento”.
Teixeira revela ainda que “há uma mentalidade e visão errôneas” de que a fiscalização pode trazer prejuízo eleitoral. “Alguns [prefeitos] acham que quando passarem a multar, perderão votos”, pontua Ubiratan. Quanto a esta arguição, o promotor de justiça e coordenador do Projeto Municipaliza, Hugo Porto, afirma ser preciso “desmitificar” esse pensamento que ele considera ser “uma lenda urbana”.
“Os resultados obtidos após a municipalização são tão impactantes positivamente falando que não há razão para crer em danos eleitorais. Um bom gestor tem sempre que prezar pela vida dos seus munícipes, e é isso que a municipalização possibilita.”
Hugo Porto, Promotor de Justiça
Essa avaliação do promotor pode ser corroborada em números. Morada Nova, Horizonte e Caucaia, por exemplo, tiveram significativa redução dos acidentes após a integração. Este último Município, cujo o trânsito é ordenado desde 1999, a média diária de acidentes caiu de quatro para dois.
Danos e consequências
A redução de acidentes, além de preservar a vida, desonera os cofres públicos. Um único paciente, vítima de acidente automobilístico, custa em média R$ 250 mil aos cofres públicos, levando em consideração atendimentos pré-hospitalar, hospitalar, pós-hospitalar, perda de produção, danos materiais, processos e danos à propriedade pública e privada.
O estudo foi realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pela Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP). Ele mostra ainda que, para casos de morte, a união é onerada em quase um milhão de reais. “Temos que observar também que a maioria dessas pessoas que perdem a vida eram economicamente ativas, o País perde produtividade”, destaca Porto.
A diretora de Gestão e Atendimento do HRC, Fabiana Alvez, acrescenta que essa sobrecarga de serviço nos setores de emergência e consequentemente na ocupação dos leitos cirúrgicos, “refletem diretamente nos elevados gastos dos recursos que subsidiam a assistência em saúde”.
Segundo explica, uma grande parcela dessa demanda é decorrente do trauma, “resultado do número crescente de acidentes envolvendo moto e carro devido à violência no trânsito.
“A maior parte dos tratamentos desta natureza requerem uma assistência em saúde mais avançada, envolvendo cirurgias e materiais médico-hospitalares de maior complexidade.”
Fabiana Alvez, Diretora de Gestão e Atendimento do HRC
Incentivos e possibilidades
O presidente do Conselho Estadual de Trânsito, Luiz Pimentel, discorda da avaliação dos prefeitos que usam como justificativa a inviabilidade financeira. Para o representante do Cetran, “há viabilidade” para que todas as cidades integrem o Sistema Nacional de Trânsito (SNT).
Essa viabilidade destacada por Pimentel se fortifica diante do leque de oportunidades que agora os gestores dispõem. “A municipalização pode ser feita de forma consorciada ou em convênio com outras cidades. Essas opções barateiam os custos de adequação necessária para a cidade municipalizar seu trânsito”, destaca o presidente do Cetran.
Essa flexibilização está presente da resolução de número 811, publicada em 15 de dezembro de 2020 pelo Conselho Nacional de Trânsito (Cotran). O texto autoriza a municipalização de forma direta – nos moldes tradicionais hoje existentes – ou indireta, com as possibilidades destacadas por Luiz Pimentel.
“Inclusive essas cidades poderão utilizar a Guarda Municipal para fiscalizar o trânsito, isso retira a necessidade de concurso público e reduz o investimento para implantação”, acrescenta o promotor Hugo Porto. O coordenador do Projeto Municipaliza reforça ainda que a modalidade por convênio permite que as prefeituras utilizem estruturas de outros municípios.
“Ao municipalizar, a legislação obriga a criação de uma escola de trânsito. Portanto, uma cidade de menor porte pode se conveniar a um município que já disponha desse equipamento e utilizá-lo. Também podem ser compartilhados o monitoramento de dados, outra exigência da lei de municipalização”, enumera Porto.
Para além dessas oportunidades, gestores terão um incentivo a mais para aderirem à municipalização do trânsito. O governo do Estado lançou no início deste ano o Programa Cuidar Melhor, iniciativa que visa ampliar a distribuição de recursos oriundos do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) aos municípios de R$ 175 milhões para R$ 525 milhões por ano, a partir de 2022.
O programa preconiza algumas condicionantes, dentre elas a redução de mortes por acidentes de trânsito envolvendo motocicletas. “É um recurso muito significativo. E, para alcançá-lo, o município deve reduzir essas mortes. O melhor caminho [para alcançar a redução] é investir na educação do trânsito e torná-lo ordenado”, avalia o diretor de Educação de Trânsito do Detran, Ubiratan Teixeira.
Projeção otimista
Para os três representantes do MPCE, Cetran e Detran, esse conjunto de incentivos e novas oportunidades tende a impulsionar a adesão das cidades. Atualmente, além das 74 com trânsito já municipalizados, outras 29 estão em processo de conclusão. Para o próximo ano, Luiz Pimentel projeta que podem ser alcançados mais dez municípios.
“É muito difícil fazer qualquer projeção numérica. Sabemos que este é o processo que pode ser lento e ainda encontra bastante resistência. Mas, como a gama de oportunidades agora existentes, acreditamos que vamos avançar, podemos chegar a mais dez [cidades] a inciarem o processo”, projetou Pimentel.
Ubiratan Teixeira também optou por não cravar nenhuma meta, mas revelou que, até 2022, “se o Ceará conseguir chegar ao número de 120 cidades com trânsito municipalizado ou com o processo iniciado, já será um bom percentual”.
Os números projetados por eles estão acima do conquistado ao longo dos quase um ano e meio de vida do Projeto Municipaliza, até sua interrupção devido à pandemia. Naquele período, foram cinco processos iniciados, segundo o promotor Hugo Porto.
“Qualquer resistência que seja do campo do recurso ou limitação financeira, vamos dar várias opções. O objetivo com a retomada do Projeto é avançar na municipalização.”
Hugo Porto, Promotor de justiça do MPCE
Benefícios com a ordenação do trânsito
Durante os meses em que o Ceará esteve em isolamento social restritivo por conta do agravo da pandemia da Covid-19, os índices de acidentes de trânsito despencaram, o que causou um efeito imediato nos atendimentos das unidades hospitalares, sobretudo àquelas de alta complexidade.
A descompressão do sistema de saúde verificada durante este período específico, pode ser, na avaliação de Hugo Porto, mantida com o rânsito melhor fiscalizado somado ao investimento na educação. “Os números comprovam essa redução. Quando há o ordenamento do trânsito, consequentemente há uma mudança de mentalidade e postura daquela população”, destaca.
Ubiratan Teixeira reforça que a queda nestes indicadores beneficia não somente as unidades de saúde que passam a ter maior capacidade para atendimento a outras enfermidades, “mas à seguridade social, a logística demanda para resgatar as pessoas vítimas de acidentes reduz, o que diminui os custos aos cofres públicos, enfim, é uma complexidade de benefícios”.
O montante advindo de taxas (como emplacamento dos veículos) e multas pode ser investido em benefício da população, como melhoria da malha viária e sinalização.
“Reconhecemos haver uma resistência inicial de gestores e população, mas logo em seguida, quando vê o ordenamento do trânsito, a redução de acidentes com evento de mortes, há uma mudança de pensamento e todos passam a apoiar”, conclui Luiz Pimentel, presidente do Cetran.
Apesar das benefícios apontados e das possibilidades postas à mesa dos prefeitos, Ubiratan Teixeira, do Detran, e Luiz Pimentel, do Cetran, reconhecem que os órgãos não possuem mecanismos legais que forcem os municípios a integrarem o Sistema Nacional.
“É como a lei dos resíduos sólidos. Está ai há anos e temos várias cidades ainda com a presença de lixões”, compara Ubiratan. Pimentel corrobora e acrescenta que, diante da negativa de determinado município, o Cetran relata ao caso ao Denatran. “É o que nos cabe. No entanto, o MP pode entrar com ações de responsabilidade. Mas, o que queremos, é expor os pontos positivos e sensibilizá-los quanto a importância do assunto sem termos que apelar para punições legais”.
Como ocorre o processo de adesão?
Para os municípios se integrarem ao Sistema Nacional de Trânsito (SNT), exercendo plenamente suas competências, eles precisam criar um órgão municipal executivo de trânsito, com estrutura para desenvolver atividades de engenharia de tráfego, fiscalização, educação e controle e análise de estatística, ou atuarem de forma conveniada ou consorciada, conforme a nova resolução autoriza.
Para efetivar a integração do município ao Sistema Nacional de Trânsito, deve ser encaminhado ao Cetran os seguintes documentos:
• denominação do órgão ou entidade executivo de trânsito e rodoviário, fazendo juntar cópia da legislação de sua constituição;
• cópia da legislação de constituição da Juntas Administrativas de Recursos de Infrações (Jari) municipal e de seu Regimento; endereço, telefone, correio eletrônico institucional do órgão ou entidade executivo de trânsito e rodoviário, e sítio eletrônico (se houver);
• fotos da fachada do prédio e das dependências, devidamente identificadas, dos veículos, caso existam, e de outros elementos julgados importantes para a análise dos trabalhos desenvolvidos para integração.
Segundo a resolução do Contran, “os municípios que optarem por delegar a totalidade ou parte das atribuições municipais a outro órgão ou entidade integrante do SNT deverão encaminhar cópia do convênio firmado”.
Já no caso da constituição de consórcio público, “caberá à entidade executiva de trânsito criada encaminhar todos os documentos relacionados neste artigo, em nome dos municípios que a compõem”.
Uma vez preenchidos os requisitos para integração ao SNT, o órgão criado assume a responsabilidade pelo planejamento, o projeto, a operação e a fiscalização, não apenas no perímetro urbano, mas também nas estradas municipais. Cabe a Prefeitura desempenhar tarefas de sinalização, fiscalização, aplicação de penalidades e educação de trânsito.
Por André Costa
Fonte: Diário do Nordeste