Constante tensão entre o Palácio do Planalto e o Congresso, demissão de figuras moderadoras de cargos de comando, escassez de políticas públicas e uma aposta em um apoio popular decrescente como estratégia de pressão política. Esse é o resumo dos primeiros seis meses do governo Jair Bolsonaro, na visão de parlamentares e cientistas políticos ouvidos pelo HuffPost Brasil.
A tentativa de formação da base aliada à revelia dos partidos, com foco em bancadas temáticas como as do boi, da bala e da Bíblia, somada à escolha de articuladores com pouca experiência e à edição de um alto número de decretos acabou minando a relação de confiança com parlamentares, na avaliação do cientista político Marco Antonio Carvalho Teixeira, da Fundação Getulio Vargas (FGV).
″É uma articulação política muito tumultuada e sem qualquer tipo de indicação de que vai ser uma relação estável, porque volta e meio tem um tiroteio do governo na direção do Congresso e o Congresso responde rispidamente”, afirmou à reportagem. Ele citou como exemplo recente a troca de farpas entre o ministro da Economia, Paulo Guedes, e o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).
Após a apresentação do parecer da reforma da Previdência, o economista criticou as mudanças, como a retirada da capitalização. O democrata rebateu que o “governo virou uma usina de crises permanente”. Na sequência, Guedes disse, reservadamente, que o “Congresso é uma máquina de corrupção”, reforçando a hostilidade com o que os bolsonaristas chamam de “velha política”.
Principal proposta econômica do governo, as mudanças nas regras de aposentadoria, se transformaram em uma pauta do Legislativo, sob liderança de Maia. “O ministro Paulo Guedes perdeu o protagonismo. O governo perde o diálogo e a ponte com o Congresso, mas o Congresso tem de avançar. A reforma não pertence mais ao Paulo Guedes. É do Congresso”, afirmou ao HuffPost Brasil o líder do Podemos na Câmara, José Nelto (GO), aliado de Bolsonaro.
Ainda é preciso ver como impactará politicamente, no Congresso, a vitória do Executivo da última sexta-feira (28) com a conclusão do acordo de livre comércio entre Mercosul e União Europeia, discutido há 20 anos. Apesar da resistência de Bolsonaro ao bloco sul-americano, o acordo acabou sendo finalizado sob a sua gestão e pode garantir um capital político importante neste momento ao presidente.
Para o deputado José Nelto, recentemente houve uma melhora no diálogo entre o Executivo e o Legislativo e uma redução na tensão, mas ainda há ajustes pendentes. Ele citou como um erro recente do Planalto o uso de um decreto, em vez de projeto de lei, para regular o acesso às armas de fogo. “Se vai para o STF desmoraliza o Congresso e o governo”, afirmou, sobre a possibilidade de o Supremo Tribunal Federal considerar a medida inconstitucional.
Em maio, o presidente editou dois decretos que flexibilizaram o porte e a posse de armamentos e munições. Ambos foram considerados inconstitucionais pelas consultorias da Câmara e do Senado, e derrubados pelos senadores em 18 de junho. O STF iria julgar a constitucionalidade das medidas presidenciais em 26 de junho, mas, na véspera, Bolsonaro mudou novamente as normas ao publicar 4 outros decretos que revogaram, em parte, os anteriores.
Dependência do apoio popular
O episódio dos decretos de armas também mostra outro foco de problema na forma de atuação do Planalto, na avaliação de especialistas: o uso das redes sociais para mobilizar os eleitores a pressionarem o Congresso para aprovar medidas de interesse do governo.
Dias antes de a medida ser derrubada pelo Senado, Bolsonaro e aliados intensificaram as publicações a favor da liberação de armamentos. “Transforma os projetos do governo numa espécie de plebiscito em vez de construir uma saída negociada”, afirma o cientista político da FGV.
Devido à dependência dessa estratégia, na visão de Teixeira, a oscilação de popularidade é especialmente sensível para o ex-deputado. “[Para] Um presidente que quer o apoio da sociedade para pressionar o Congresso, ser aprovado por 32% é um indicador muito ruim.”
Pesquisa CNI/Ibope divulgada na última quinta-feira (27) registrou o pior desempenho de Bolsonaro desde o início do mandato presidencial. Segundo a sondagem, 32% dos brasileiros avaliam o governo como ótimo ou bom e outros 32% consideram a gestão é ruim ou péssima.
‘Toma lá dá cá’
Na visão da deputada Bia Kicis (PSL-DF), uma das vice-líderes do governo, a derrota do decreto de armas no Senado foi “lamentável” e “contra a vontade do povo”. De modo geral, ela aposta em uma perspectiva positiva em relação ao alinhamento do Congresso com o Planalto.
“Alguns se ressentem da mudança [na articulação política] e acabam gerando dificuldade no trâmite das matérias, mas acho que a sinalização é positiva”, afirmou ao HuffPost Brasil.
De acordo com a procuradora aposentada e ex-organizadora de protestos anti-petistas, o governo atual conseguiu estabelecer “novos critérios de relacionamento” entre os Poderes. “Sempre que há uma mudança, as pessoas estranham. Não estou dizendo que, se todos os parlamentares participassem, desse jogo. Tem muita gente boa no Congresso, mas era notório que existia um ‘toma lá dá cá’. O presidente prometeu que ia acabar com isso e o Brasil apoiou.”
Ao usar a expressão “toma lá dá cá”, a parlamentar se refere ao desvio de recursos públicos ilegalmente para parlamentares, envolvendo indicações políticas, em troca de votos no Parlamento. ”Nos governos anteriores, o Congresso estava de joelhos para o Executivo, sendo comprado no caso do Mensalão, do Petrolão. Era uma vergonha para a gente. A proposta foi de romper com esse sistema e devolver a dignidade para o Parlamento”, disse.
Apesar da limitação nas nomeações, a liberação de emendas parlamentares continua sendo moeda de barganha em Brasília, segundo deputados e senadores ouvidos pela Folha de S. Paulo. Reportagem do jornal publicada na última quinta (27) afirma que o congressista que apoiar o governo na comissão especial da Câmara sobre reforma da Previdência terá R$ 10 milhões a mais em emendas e outros R$ 10 milhões extras no plenário. São necessários 308 votos, em dois turnos, para a proposta ser aprovada na Câmara.
Responsabilidade do Congresso
Como contraponto, o avanço de algumas votações no Congresso é entendido, por atores mais críticos, como uma reação ao modo de atuação do governo. “Houve, em alguma medida, uma certa decisão de que o Congresso, de forma responsável, tinha de fazer o Estado operar, independente do Executivo. As inúmeras provocações fizeram com que o Legislativo se colocasse numa posição de que precisa se resguardar. A agenda, em especial, a reforma da Previdência, está sendo tocada de forma independente”, afirma Andréa Freitas, cientista política da Unicamp.
A visão é defendida por oposicionistas. “Posso ter discordância sobre a reforma da Previdência ou outros temas, mas o presidente Rodrigo Maia mantém a Câmara funcionando, tentando produzir internamente o diálogo que o Parlamento precisa para funcionar”, afirmou à reportagem a deputada Maria do Rosário (PT-RS).
A ex-ministra do governo Dilma, que antagoniza com o presidente desde que Bolsonaro era deputado, citou como exemplo de maturidade do Legislativo a aprovação, em 11 de junho, de um crédito extra para o Executivo que evitou o descumprimento da chamada “regra de ouro”. A norma proíbe operações de crédito superiores às despesas.
Na Câmara, o trabalho de articulação do governo é constante alvo de críticas entre parlamentares. Não é de hoje que está em jogo o cargo do Major Victor Hugo (PSL-GO), e o ministro Onyx Lorenzoni (Casa Civil) foi substituído na função de articulação pelo general Ramos, novo titular da Secretaria de Governo.
Essa instabilidade é outro elemento de entrave para a construção de uma relação de confiança entre Executivo e Legislativo, uma vez que coloca em xeque a capacidade de cumprir acordos. “Imagina que seu chefe vai ser demitido e faz uma promessa para você. Você não confia. Eles estão errando feio em coisas muito básicas”, afirma a cientista política Andréa Freitas.
Escassez de políticas públicas
A constante troca de cargos também impacta na construção de propostas na Esplanada dos Ministérios. “Você precisa ter uma máquina minimamente organizada para tocar uma agenda. Essa troca constante de pessoas em cargos-chave abala a capacidade de organização”, destaca Freitas.
Foram três demissões de ministros desde a posse. Gustavo Bebianno deixou a Secretaria-Geral da Presidência em fevereiro. Dois meses depois, o titular do Ministério da Educação (MEC), Ricardo Vélez, caiu.
A mais recente queda no primeiro escalão, do general Santos Cruz (Secretaria de Governo) foi uma demonstração de preferência ideológica do presidente na escolha de integrantes do governo.
“Amigos, o presidente tem muitos, mas nem todos estão tão alinhados”, diz Kicis. Considerado moderado, Santos Cruz foi alvo de duras críticas da ala seguidora do escritor Olavo de Carvalho, que inclui o vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ), filho do presidente.
A batalha ideológica também foi motivo para trocas em outros postos-chave, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex) e o Inep, órgão responsável pelo Enem.
“Com 6 meses de governo, a gente já devia ter uma certa clareza – e ainda não temos – de qual é a agenda desse governo. O Executivo organizado dessa forma tão fragmentada dá a sensação de que, para cada ministro, há uma convicção sobre o que deveria ser a política pública do País”, destaca Freitas.
Na avaliação da especialista, a pouca capacidade do Executivo de coordenar seus próprios processos tem dificultado o envio de propostas para o Legislativo. “Comparada à de outros governos, a iniciativa no governo Bolsonaro tem sido mínima. O número de projetos que ele enviou é muito mais baixo do que qualquer governo no pós-1988”, diz.
Um dos poucos ministros a enviar propostas para o Congresso, Sérgio Moro (Justiça) enfrenta dificuldade de fazer avançar a tramitação do chamado pacote anticrime. O texto está parado na Câmara dos Deputados. No Senado, uma das medidas, a criminalização do caixa dois, só avançou porque foi incluída dentro de outro projeto de lei, com objetivo de combater o abuso de autoridade por parte de juízes e integrantes do Ministério Público.
Um dos maiores orçamentos da Esplanada, o Ministério da Educação, por sua vez, é exemplo de paralisia. O titular, Abraham Weintraub, ainda não apresentou uma agenda concreta para vencer problemas como analfabetismo, evasão escolar e indicadores baixos de qualidade do ensino. Há também uma preocupação com a reformulação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação (Fundeb), que vence em 2020. “Contingenciar dinheiro não é uma política pública de educação”, diz a professora da Unicamp.
Por Marcella Fernandes
Fonte: Huffpost Brasil