O PSL-RJ direcionou R$ 49 mil de sua cota feminina nas eleições de 2018 para duas empresas ligadas a assessores de Flávio Bolsonaro envolvidos no esquema da rachadinha na Alerj (Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro).
O valor equivale a mais de 10% da verba total para as mulheres candidatas. De 33 postulantes do diretório estadual, 27 devolveram metade de suas verbas eleitorais para essas empresas.
As prestações de contas das candidaturas femininas do partido à Justiça Eleitoral apresentam também suspeitas de irregularidades no uso dos valores. Dez dessas candidatas apresentam indícios de fraude contábil e duas tiveram suspeita de falsificação de assinaturas.
As duas empresas contratadas são Alê Soluções e Eventos e Jorge Domingues Sociedade Individual Advocacia. A primeira pertence a Alessandra Oliveira, assessora de Flávio Bolsonaro na Alerj e, ao mesmo tempo, primeira-tesoureira do partido no Rio. A segunda é ligada a Luis Gustavo Botto Maia, advogado eleitoral do filho do presidente da República.
Alessandra e Botto Maia são investigados pelo MP-RJ (Ministério Público do Rio de Janeiro) por suposta participação no esquema de repartição ilegal de salários de funcionários do gabinete de Flávio, quando ele era deputado estadual.
Cinco candidatas ouvidas pela reportagem disseram que a contratação das duas empresas foi direcionada pelo PSL do Rio, presidido em 2018 por Flávio Bolsonaro (veja mais abaixo no infográfico como foi feita a distribuição dos recursos). Hoje, ele é senador filiado aos Republicanos.
A assessoria de imprensa do diretório estadual do PSL afirmou que não responderia à reportagem porque os fatos ocorreram durante a gestão anterior. Já a assessoria de imprensa e o advogado de Flávio Bolsonaro não responderam aos diversos contatos feitos UOL, desde o final de setembro.
Alessandra Oliveira e Botto Maia também foram procurados por telefone e e-mail e se recusaram a falar. No Rio, a reportagem esteve no endereço comercial de Alessandra e no endereço residencial de Botto Maia, onde deixou recado por duas vezes, mas não obteve retorno.
Padrão suspeito de gastos
A lei eleitoral exige que pelo menos 30% do fundo especial de campanha e do fundo partidário usado durante a eleição sejam destinados às campanhas de mulheres. Dados do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) mostram que o PSL-RJ repassou R$ 459 mil para as candidaturas de mulheres durante as eleições de 2018.
Pelo menos, três mulheres ouvidas pela reportagem disseram acreditar que suas candidaturas, apesar de reais, não tinham viabilidade por falta de ajuda do partido. No fim, tiveram a impressão de que serviram para que o PSL-RJ pudesse atingir o mínimo 30% de mulheres na composição da chapa. Reportagens anteriores das revistas “IstoÉ” e “Veja” já tinham tratado de suspeitas na movimentação financeira da campanha do PSL-RJ em 2018.
Do total de 33 mulheres que contrataram os serviços das duas empresas, dez tiveram padrão idêntico de movimentação financeira na campanha. Receberam o mesmo valor de doação do PSL-RJ, a poucos dias das eleições, e gastaram exatamente do mesmo jeito: metade com as empresas ligadas a Alessandra e Botto Maia e a outra metade com um único cabo eleitoral.
“Eu diria que isso é suspeito. Esse tipo de padrão implica uma ação coordenada. Pode ser uma ação coordenada simplesmente para racionalizar os recursos. Ou para fraudar”
Silvana Battini, procuradora regional eleitoral do Rio de Janeiro
O caso do PSL-RJ em 2018 possui as mesmas características de um episódio investigado nas eleições de 2016, no Piauí. Segundo entendimento endossado pelo TSE, “a extrema semelhança dos registros de campanha – tipos de despesa, valores, data de emissão das notas fiscais e, inclusive, a sequência numérica destas – denota claros indícios de maquiagem contábil”.
No caso piauiense, a “maquiagem contábil” foi reforçada por outros indícios de irregularidades, levando a Justiça Eleitoral a considerar que as candidaturas de mulheres foram fraudulentas, com objetivo de preencher a cota feminina. Como resultado, toda a chapa foi cassada – incluindo as candidaturas de homens.
A procuradora da República Silvana Battini afirmou que uma possível investigação sobre o que aconteceu na campanha do PSL-RJ em 2018 só pode ser aberta agora na Justiça criminal, já que não há mais prazos para um inquérito eleitoral.
Além das candidaturas femininas, as firmas dos assessores de Flávio Bolsonaro também foram contratadas por oito candidaturas masculinas do mesmo partido. No total, as empresas receberam R$ 91 mil.
Metade para Alessandra e Botto Maia
A empresa Alê Solução e Eventos foi contratada pelas 33 candidatas para prestar serviços de contabilidade, uma atividade que não consta entre suas atribuições, segundo cadastro da Receita Federal. Formalmente, é uma empresa de produção de eventos de pequeno porte.
Por sua vez, a empresa Jorge Domingues Sociedade Individual de Advocacia pertence a um bancário aposentado, pai de um amigo de infância e ex-sócio de Botto Maia. Aberta em 2017, a firma passou a emitir notas fiscais somente no período eleitoral do ano seguinte para serviços prestados às campanhas do PSL-RJ. Essa é uma característica que indica que houve fraude contábil, de acordo com o entendimento da Justiça Eleitoral. Procurado, Jorge Domingues não quis se pronunciar.
Os contratos com as candidatas e peças das prestações de contas são assinados exclusivamente pelo advogado Botto Maia.
As empresas dos dois assessores de Flávio Bolsonaro cobraram cada uma R$ 750 pelos serviços às candidatas. O valor total, de R$ 1.500, corresponde a 52% de tudo que a maioria das candidatas recebeu do partido para a campanha – R$ 2.857,14. Esse padrão foi percebido em 27 das candidatas que contrataram os serviços das duas firmas.
“Primeiro, o partido disse que as [candidatas] mulheres receberiam advogado e contabilidade de graça. Depois, falaram que tinha que dar mais R$ 750 para a contadora e mais R$ 750 para o advogado”, diz Sarita Paiva, candidata a deputada estadual em 2018. “Eu acho que muitas candidatas foram [recrutadas] só para preenchimento [da cota], para que dê posição para os homens”.
Os serviços prestados foram criticados pelas candidatas ouvidas pelo UOL.
“Eu não conheço o advogado até hoje. Com relação à contabilidade, foi um serviço muito mal [feito]. Foi realmente uma grande sacanagem da liderança [do PSL]. Não sabiam o que estavam fazendo. Ou sabiam muito bem o que estavam fazendo, enganando as marinheiras de primeira viagem”
Christiane Alvarenga, candidata a deputada estadual em 2018
Candidatas ligadas a Fabrício Queiroz
A reportagem constatou que algumas das candidatas escolhidas pelo PSL-RJ em 2018 mantinham relações próximas a assessores de Flávio Bolsonaro.
Entre elas estão Edianne Abreu e Charlô Ferreson, que concorreram a deputada federal. As duas são próximas de Fabrício Queiroz, suspeito de ser o principal operador da rachadinha (veja foto que abre essa reportagem). As duas candidaturas têm indícios de fraude contábil, ou seja, contrataram as duas empresas citadas e único cabo eleitoral.
Em seu perfil no Instagram, Edianne assumiu que não fez campanha para si mesma: “Quero agradecer a você que acreditou na minha pessoa, mesmo sem eu fazer minha própria campanha, pois estava engajada na campanha dos Bolsonaros”. No mês passado, Edianne, que é dentista, foi nomeada como coordenadora na Secretaria Nacional do Audiovisual do governo de Jair Bolsonaro. Ela se recusou a falar com a reportagem.
Por sua vez, a candidata Charlô Ferreson chegou a ter sua prestação de contas rejeitada pela Justiça Eleitoral pela suspeita de fraude na assinatura de um documento. Botto Maia entrou com um recurso e argumentou que ela assinou “de qualquer jeito”, apresentando uma nova cópia desse papel. A Justiça acatou e aprovou as contas. “É porque eu sou disléxica. Às vezes eu assino diferente”, disse Charlô.
Outras candidaturas com indícios de fraude contábil são as de Bruna Hassen e Denise Oliveira, respectivamente, nora e irmã de Valdenice Meliga, então tesoureira do PSL-RJ e assessora de Flávio Bolsonaro na Alerj. Durante campanha, Valdenice chegou a assinar cheques em nome de Flávio.
Em sua prestação de contas, Bruna não comprovou os gastos com seu único cabo eleitoral e foi condenada pelo TRE-RJ a devolver o valor. Botto Maia recorreu e apresentou um comprovante da despesa. Mesmo fora do prazo para prestação de contas, a Justiça Eleitoral aceitou. Bruna foi contatada por telefone, email e WhatsApp, mas não respondeu.
Procurada pela reportagem, Denise Oliveira primeiro disse que não se lembrava de quem havia contratado, além da contadora e do advogado. Ao ser informada de que os dados da Justiça Eleitoral mostravam que ela contratara o irmão afirmou que o contratou como motorista. Porém, os documentos enviados à Justiça Eleitoral falam de “coordenador de campanha”.
Outras duas candidatas apresentaram recibos com dados falsos referentes a serviços prestados por Wesley Chaves, marido de Alessandra Oliveira. Supostamente, Chaves teria sido cabo eleitoral. O UOL entrou em contato com Chaves por email. Ele optou por responder à mensagem com um emoji pensativo (ideogramas e smileys usados em mensagens eletrônicas).
Uma das candidatas é Célia Lobo, de Cabo Frio (RJ). A assinatura dela que consta no recibo de Chaves difere muito da que se vê na sua identidade. Célia Lobo não respondeu às perguntas da reportagem.
A campanha de Guiomar Lacerda também contratou o marido de Alessandra. No recibo apresentado, o endereço que é apontado como sendo o de Chaves não existe, conforme constatou o UOL. O local fica em uma avenida movimentada de Jacarezinho, comunidade na zona norte do Rio. Ali, há apenas barracas de comércio popular. Guiomar disse que não se lembra de contratá-lo: “Então eles [partido] que fizeram isso. Eu não contratei ele”.
Fonte: UOL