Parentes de vítimas da Covid-19 se emocionaram em audiência pública hoje na CPI da Covid e criticaram o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) por atitudes dele ao longo da pandemia do novo coronavírus.
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O presidente já debochou de quem defende o isolamento social, contraria recomendações científicas ao promover aglomerações, não costuma usar máscara e disse que não vai se vacinar contra a Covid-19, ao contrário do que pedem médicos e especialistas.
Um dos convidados, que perdeu o filho de 25 anos para a doença, afirmou acreditar que o presidente deveria pedir desculpas.
“Acho que nós merecíamos um pedido de desculpas da maior autoridade ao país, porque não é questão política, se de partido ou de outro. Estamos falando de vidas.”
Márcio Antônio do Nascimento Silva, que perdeu o filho para a Covid-19
Ao relatarem dificuldades em hospitais e funerárias devido à grande quantidade de pessoas vítimas da Covid-19, os convidados hoje na CPI também cobraram justiça diante de eventuais omissões e erros do governo.
O Brasil registra mais de 603,3 mil mortes por Covid-19 e 21,6 milhões de casos da doença até ontem, segundo o consórcio de veículos de imprensa.
“Honrem os nossos mortos, diferentemente do que fez o presidente da República. Garantam memória, garantam verdade, garantam reparação. Entreguem o relatório final fiel às barbaridades e atrocidades que vocês ouviram aqui, o desprezo pela ciência, a negligência e o descaso”, pediu Rosane Brandão, que perdeu o marido para a Covid-19.
“Cada um de nós, e vocês ouviram, tem uma história diferente pra contar. E nós queremos contar essa história, porque a gente não elabora o luto no silêncio do esquecimento, nós precisamos falar e nós precisamos ser escutados”, acrescentou.
Alguns dos convidados hoje defenderam que o relatório consta a sugestão de pensão para órfãos da pandemia, o que está sendo estudado pelos senadores membros da comissão.
Relato de que corpo de vítima teve de ser procurado
Em um dos relatos mais fortes, Katia Shirlene Castilho dos Santos, que perdeu os pais para a doença, afirmou que a irmã teve que procurar o corpo do pai na funerária.
À época do óbito, em março deste ano, o Brasil vivia o auge da segunda onda da pandemia e era grande o volume de cadáveres empilhados nos necrotérios.
Segundo Katia, o pai contraiu a Covid-19 a cerca de uma semana da data em que poderia tomar a vacina, em São Paulo. Já a mãe morreu depois de ficar hospitalizada por 26 dias na UTI (Unidade de Terapia Intensiva) de um hospital da operadora de saúde Prevent Senior. De acordo com a depoente, a mãe usou os medicamentos do kit Covid logo após a primeira consulta por videochamada, sem que qualquer exame tivesse sido feito.
Naquele dia que meu pai faleceu chegou a quase 4.000 mortos. Foi o pico da segunda onda da pandemia. A minha irmã teve que ir na funerária, com o carro da funerária, e infelizmente ela passou por todos esses problemas. Porque, quando ela chegou lá no necrotério, não estavam encontrando o corpo do meu pai.”
Eram muitos corpos naquele necrotério, dentro de um saco preto. E o rapaz que estava lá e que era responsável pediu ajuda dela ainda para procurar o corpo do meu pai. E ela saiu procurando. Viu que tinha sacos maiores e menores.”
Katia contou que, depois de ajudar a encontrar o corpo do pai, a irmã acompanhou o funcionário da funerária até o cemitério. Neste momento, a familiar da vítima ouviu que, caso “não se importasse”, ele teria que deixar o cadáver no chão, porque “ainda tinha muitos outros para buscar”.
“Para quem não sabe, quem morre de Covid é enterrado nu, dentro de um saco, sem direito a despedida alguma. Ela ainda teve que pegar esse corpo do meu pai. O rapaz disse que era tanto corpo que ele precisava de ajuda. Ela teve que colocar o corpo do meu pai dentro do caixão. Eles foram ainda ao cemitério e, quando chegou lá, o rapaz da funerária disse que, se ela não se importasse, ele teria que deixar o corpo do meu pai no chão, na terra… Porque ele tinha muitos corpos ainda para buscar”, disse Katia aos senadores.
“Só conseguimos fazer uma oração rápida de despedida do homem que ensinou a gente a ser as mulheres que somos hoje. Não teve nem uma despedida digna”, acrescentou.
A depoente também afirmou hoje à CPI que decidiu “fazer do luto uma luta” e disse ter sentido revolta quando viu um vídeo em que o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) “imitou uma pessoa com falta de ar”.
“Quando a gente vê um presidente da República imitando uma pessoa com falta de ar, isso para nós é muito doloroso… Se ele tivesse ideia do mal que ele faz para a nação, além de todo o mal que ele fez, ele não faria isso”, declarou ela, emocionada.
Não são só números. São vidas, são sonhos, são histórias que foram encerradas. Encerradas por tantas negligências. E nós queremos justiça. O sangue dessas mais de 600 mil vítimas escorre nas mãos de cada um que subestimou esse vírus. A vacina é a única solução para vencermos.”
Katia disse entender que o pai e a mãe poderiam estar vivos ainda caso tivessem tomado a vacina. “Meus pais não tiveram essa oportunidade e poderiam estar aqui conosco ainda hoje.”
Remédio sem consentimento
Segundo a depoente, o pai estava internado em um hospital público e morreu em 22 de março, mesmo dia em que ela e a irmã levavam a mãe, com os sintomas da Covid em evolução, para um dos hospitais da Prevent Senior. Apenas a mãe possuía o plano de saúde.
Diante da gravidade da situação, as irmãs tiveram que se dividir. Enquanto Katia permaneceu com a mãe no hospital, a irmã passou a providenciar os detalhes para o sepultamento do pai. Katia não pôde ir ao enterro.
“Não conseguimos nem viver o luto porque minha mãe já estava no hospital. Não acompanhei o sepultamento do meu pai.”
Antes de ser levada ao hospital em 22 de março, a mãe de Katia já havia passado pelo atendimento remoto da Prevent Senior. Na ocasião, a médica responsável teria encaminhado o kit Covid para a residência da família, sem realizar exames ou solicitar a testagem a fim de comprovar o quadro de contaminação pelo coronavírus.
O tratamento foi então iniciado, mas a idosa acabou piorando com o passar do tempo. A filha decidiu então levar a mãe a um dos hospitais da operadora, mas os cuidados, segundo ela, não foram adequados. Um médico da unidade teria se recusado a fazer exame de tomografia, sob a alegação de que outros pacientes, sem Covid, também usariam o equipamento.
A família voltou para casa, mas o quadro da mãe continuou em estágio acelerado de agravamento. “Levamos a mãe para o hospital de novo, no dia 22, uma segunda-feira. Ela saiu de casa já com o oxigênio. No hospital, fizeram os exames e viram que o pulmão dela estava 50% comprometido.”
Posteriormente, a mãe foi transferida para uma UTI em outro hospital, mas antes teve que aguardar por cerca de três horas (as Unidades de Terapia Intensiva estavam lotadas à época, dado o pico do número de casos). A partir de então, foram 26 dias em estado crítico até a confirmação do óbito, em abril.
“Fizeram uso do medicamento flutamida para ela mesmo sem o nosso consentimento. A gente não autorizou. Ela passou mais 26 dias na UTI e vários procedimentos. Infelizmente, em 26 de abril desse ano, ela nos deixou também”.
Taxista perdeu filho para a Covid-19
O taxista Márcio Antônio do Nascimento Silva, natural do Rio, também contou sua história hoje à CPI da Covid. Ele perdeu o filho Hugo, de 25 anos, em decorrência do vírus. O carioca ficou conhecido na cidade depois de protagonizar um gesto contra o desrespeito de pessoas que debochavam de um ato em memória de vítimas da Covid, na praia de Copacabana, em junho do ano passado.
Na ocasião, a ONG Rio de Paz havia fincado na areia cruzes em respeito aos que morreram em virtude da doença. Algumas pessoas começaram a invadir o espaço delimitado pela homenagem para derrubá-las. Silva passava pelo local naquele momento, pouco depois de perder o filho.
O carioca foi então à areia e recolocou os objetos no lugar, mesmo sendo hostilizado pelos presentes.
Márcio Antônio criticou deboches de políticos e outras pessoas diante da doença e afirmou que a dor diante da morte do filho não é um “mimimi”.
Em março deste ano, o presidente Jair Bolsonaro afirmou ser preciso “enfrentar os nossos problemas” ao criticar medidas de restrição social e disse: “Chega de frescura, de mimimi. Vão ficar chorando até quando?”
A declaração de Bolsonaro aconteceu em meio à vacinação da população a passos lentos e a um dos piores períodos da crise sanitária vivida pelo país.
“O sentimento que eu fico não é só pela dor da morte. É por tudo o que veio depois. Cada deboche, cada sorriso, cada ironia, sabe? No meu coração foi muito difícil não conseguir entender isso. Por isso, a CPI foi tão importante para mim”, declarou hoje.
Para ele, a CPI foi fundamental para que eventuais omissões e erros fossem apurados e vidas fossem salvas. Ele acrescentou que quem fala que a CPI é um circo “não se importa com as pessoas que morreram”.
O pai de Hugo questionou o motivo pelo qual tantas pessoas se opõem às máscaras e às vacinas, e disse que “daria tudo” para que seu filho tivesse tido a chance de ser vacinado. Quando ele se infectou e morreu, ainda não havia vacina disponível, informou.
“Não dá pra ver um ministro da Saúde dando risinho de deboche.”
Márcio Antônio do Nascimento Silva, que perdeu o filho para a Covid-19
O taxista ainda disse que, no momento em que foi reconhecer o filho, ele estava dentro de um saco. O procedimento tem sido usual no caso de vítimas contra a Covid-19 por receio de contaminação de outras pessoas e de ambientes com o coronavírus. Velórios costumam ser mais restritos em termos de convidados e cerimônias.
“Não pude dar um abraço no meu filho, não pude dar um último beijo. Cheguei a levar uma roupa para vesti-lo. Não consegui fazer nenhum dos atos simbólicos. Tive que ficar parado 3 ou 4 horas na porta do cemitério olhando um carro sabendo que meu filho estava ali dentro para ser enterrado. Então, minha dor não é mimimi. Não é. Dói pra caramba mesmo. Dói, entendeu? Não aceito que ninguém aceite isso como normal. Não é normal. Não é mimimi. Não é minha [dor] só não. São de todas [as pessoas] que perderam [alguém].”
Depoimentos são ‘retrato da tragédia’
O vice-presidente da CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), afirmou que os senadores tiveram hoje um “retrato da tragédia”. Em sua avaliação, a CPI se tornou a “última esperança para que 600 mil famílias tenham um pouco de consolo no coração” por meio de atos concretos para haver justiça. Ele disse não se tratar de vingança.
“Se trata de fazer tudo o que for possível para que ninguém se esqueça o tamanho dessa tragédia, que ainda está em curso. Menor e sob controle, mas que ainda está em curso.”
O líder da oposição no Senado disse também que maus exemplos devem ser lembrados e analisados para que não se repitam.
Vídeo com projeto de memorial em homenagem às vítimas da Covid-19 aprovado pelo plenário do Senado foi transmitido ao final da audiência. A iniciativa ainda não tem previsão de data para sair do papel.
Outros participantes
Além de Katia, Rosane e Márcio Antônio, participaram da audiência pública:
• Mayra Pires Lima, enfermeira de Manaus. Perdeu a irmã, que deixou 4 filhos, na crise da falta de oxigênio medicinal em Manaus, em janeiro deste ano;
• Arquivaldo Bites Leite. Está em tratamento com graves sequelas após ter Covid-19;
• Antônio Carlos Costa, representante da ONG Rio de Paz.
Representante de conselho de secretarias de saúde
Amanhã (19), a CPI deve realizar a oitiva com Elton da Silva Chaves, representante do Conasems (Conselho de Secretarias Municipais de Saúde).
A testemunha foi convocada para esclarecer questionamentos a respeito da falta de análise de um estudo com parecer contrário a medicamentos do chamado “kit Covid” no combate ao novo coronavírus.
A Comissão Parlamentar de Inquérito está na reta final. Divergências sobre pontos do relatório final elaborado pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL) fizeram com que a leitura do documento, marcado para amanhã, fosse adiada. A previsão é que a ação aconteça semana que vem.
Randolfe disse hoje que o relatório deve ser “contundente e forte”, e não lhes cabem divisões “artificiais”.
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Fonte: UOL