Em um tom agressivo, em que atacou os governos de França, Venezuela e Cuba, o socialismo e o ambientalismo, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) abriu hoje a 74ª Assembleia Geral da ONU (Organização das Nações Unidas) com um discurso semelhante ao que permeou sua candidatura à Presidência, no ano passado.
Na fala, o presidente não poupou sequer a própria ONU. Em um discurso ideológico, apontou ações que classificou como ameaças à soberania do Brasil.
A previsão era que o discurso de Bolsonaro, que se recupera de cirurgia, durasse 20 minutos, mas ele falou ininterruptamente por 31 minutos.
Na fala, Bolsonaro atacou “sistemas ideológicos de pensamento”, que segundo ele estariam invadindo escolas, universidades, meios de comunicação e a “família”, sob a acusação de tentar subverter o sexo biológico das crianças.
As declarações aparecem à sombra da chamada “ideologia de gênero”, expressão que não é reconhecida na comunidade acadêmica, mas vem sendo usada por grupos conservadores e ligados à direita para criticar discussões sobre diversidade sexual e de gênero.
Ataques à imprensa e a autoridades estrangeiras
Ao longo do discurso, Bolsonaro convidou os presentes para visitarem o Brasil e verem com os próprios olhos que o país é bem diferente do que, segundo ele, tem sido relatado pela imprensa.
O presidente justificou as atuais queimadas na Amazônia como um incidente favorecido pelo clima seco e também por práticas da cultura local. “Ela [Amazônia] não está sendo devastada e nem consumida pelo fogo, como diz mentirosamente a mídia. Cada um de vocês pode comprovar o que estou falando agora”, declarou Bolsonaro.
Mas dados de diferentes órgãos e entidades apontam para um aumento no número de queimadas na Amazônia pelo menos desde junho deste ano. Em agosto, produtores rurais do Pará organizaram o “dia do fogo”, quando incendiaram, em conjunto, áreas da Amazônia.
Também em agosto, segundo dados do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), o desmatamento na Amazônia aumentou 222% em comparação com o mesmo período no ano passado.
Ao defender a soberania do país, Bolsonaro direcionou críticas ao presidente da França, Emmanuel Macron, mesmo sem nomeá-lo. O presidente francês se tornou uma das vozes mais críticas à política ambiental do governo Bolsonaro —desde então, os dois vêm protagonizando duros embates.
Bolsonaro também acusou a mídia de difundir a “falácia” de que a floresta é um patrimônio da humanidade. A fala também foi uma resposta a Macron, que no mês passado falou sobre a opção de internacionalizar a gestão das florestas. Ontem, em entrevista à Folha, o presidente francês disse respeitar a soberania de outros países, mas afirmou que “a França é parte da Amazônia”.
Sob o argumento de que a soberania brasileira deve ser protegida, Bolsonaro rebateu críticas e cobranças de lideranças mundiais sobre a política ambiental do seu governo. “Nossa Amazônia é maior que toda a Europa Ocidental e permanece praticamente intocada”, afirmou.
Apesar da fala de Bolsonaro, ao longo da história, o Brasil já desmatou 20% da Floresta Amazônica, segundo relatório da Procuradoria do Meio Ambiente do Ministério Público Federal.
Em mais uma investida contra Macron, mesmo sem nominá-lo, Bolsonaro disse ser um equívoco afirmar que a floresta é o pulmão do mundo. A declaração foi publicada pelo presidente francês em seu Twitter.
Reservas indígenas
Bolsonaro enfatizou seus argumentos recentes de que a população indígena clama por desenvolvimento. Ele mencionou a presença da indígena bolsonarista Ysani Kalapalo, que estava sentada no plenário ao lado da primeira-dama, Michele Bolsonaro.
“Hoje, 14% do território brasileiro está demarcado como terra indígena, mas é preciso entender que nossos nativos são seres humanos, exatamente como qualquer um de nós”, disse. “Quero deixar claro: o Brasil não vai aumentar para 20% sua área já demarcada como terra indígena, como alguns chefes de Estados gostariam que acontecesse”, emendou.
Apesar da fala de Bolsonaro, a demarcação de terras indígenas está estacionada desde 2016, quando a presidente ainda era Dilma Rousseff (PT), de acordo com dados da Funai (Fundação Nacional do Índio).
O presidente criticou as ameaças de sanções e acusou outros países de tentar usar os índios brasileiros como reserva de mercado. Segundo ele, há “apenas” 15 mil índios da tribo Ianomami que vivem numa área do tamanho de Portugal ou da Hungria.
Bolsonaro também direcionou críticas ao cacique Raoni, líder indígena conhecido por sua luta contra o desmatamento da Amazônia. Disse que pessoas como ele são usadas como “peças de manobra” por governos estrangeiros para avançar seus interesses na região amazônica.
“Os que nos atacam não estão preocupados com os índios, mas com as riquezas minerais [dessas regiões]”, afirmou o presidente. Recentemente, o cacique Raoni fez um giro pela Europa e, em uma de suas visitas, se encontrou com Macron.
Ataques a Venezuela e Cuba
Bolsonaro usou suas críticas ao Mais Médicos para direcionar ataques a Cuba. Criado pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT) em 2013, o programa tinha o objetivo de ampliar a presença de médicos no interior do Brasil.
“Um acordo entre o governo petista e a ditadura cubana trouxe ao Brasil 10 mil médicos sem nenhuma comprovação profissional”, declarou o presidente.
O programa, de fato, dispensava a revalidação de diplomas no Brasil para médicos estrangeiros. No ano passado, cerca de 8 mil médicos cubanos ocupavam as vagas do programa, pouco antes de Cuba anunciar sua saída. Outras 6 mil eram ocupadas por brasileiros (formados dentro e fora do país).
Os cubanos do Mais Médicos eram convocados por meio de um acordo internacional com a Opas (Organização Panamericana da Saúde), que era responsável por receber o valor dos salários dos profissionais. Como uma crítica, Bolsonaro disse que o programa foi respaldado pela ONU. Citou, ainda, a influência dos governos petistas para alimentar ditaduras em outros países, como o governo de Hugo Chávez, na Venezuela.
O presidente também falou sobre a situação na Venezuela, dizendo que o país experimenta hoje “a crueldade do socialismo” e que o Brasil sente os impactos disso por causa do alto número de migrantes. Disse que o governo tem atuado em parceria com os EUA e com outros países para restabelecer a democracia no país vizinho, mas que a ameaça ainda existe.
No discurso, Bolsonaro disse que o Brasil trabalha para reconquistar a confiança do mundo e diminuir problemas como desemprego e violência. Ele diz que o país estava “à beira do socialismo” e está sendo reconstruído em seu governo “a partir dos anseios e dos ideais de seu povo”.
“Meu país esteve muito próximo do socialismo, o que nos colocou numa situação de corrupção generalizada, grave recessão econômica, altas taxas de criminalidade e de ataques ininterruptos aos valores familiares e religiosos que formam nossas tradições”, falou.
Aceno a Moro
Bolsonaro buscou apresentar seu governo como uma alternativa de abertura econômica para o país, com combate à burocracia, à corrupção e a acordos comerciais, sem deixar de citar os escândalos do PT e tecer elogios ao atual ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro.
A relação entre Bolsonaro e Moro, seu ministro de maior popularidade, passou por um período conturbado no mês passado. Crítico contumaz do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Bolsonaro fez questão de lembrar que Moro foi o juiz responsável por julgar e mandar prender o petista.
“Há pouco, presidentes socialistas que me antecederam desviaram centenas de bilhões de dólares comprando parte da mídia e do parlamento, tudo por um projeto de poder absoluto. Foram julgados e punidos graças ao patriotismo, perseverança e coragem de um juiz que é símbolo no meu país, o Dr. Sergio Moro, nosso atual Ministro da Justiça e Segurança Pública”, afirmou o presidente.
A fala de Bolsonaro acontece em um cenário de incertezas para a Operação Lava Jato, já que o STF (Supremo Tribunal Federal) deve analisar amanhã uma tese que pode anular condenações impostas pela operação.
No discurso, Bolsonaro ainda discorreu sobre as viagens que seu governo tem feito para retomar relações comerciais, como a viagem a Davos, no início do ano, a Israel e Argentina. Prometeu que, ainda este ano, deve investir em parceiros na Ásia —Oriente Médio, Japão e China.
Fonte: UOL