Desde o início do estado de emergência no Ceará devido à pandemia da Covid-19, o Ministério Público do Estado (MPCE) já acionou 88 das 184 prefeituras cearenses para acompanhar os gastos públicos nesse período. É o que mostra um levantamento feito pelo Diário do Nordeste junto a dados oficiais do MPCE e notícias divulgadas pelo órgão em seu site.
Os casos têm objetivo preventivo, de alertar para transparência nas despesas, mas vão até ações judiciais para barrar contratos e efetivar compra de equipamentos essenciais à Saúde. Chama atenção também o alerta que diz respeito às eleições: a necessidade de impessoalidade de gestores nos gastos da Covid.
Além do MPCE, também têm atuado junto ao Governo do Estado e prefeituras instituições como Tribunal de Contas do Estado (TCE), Ministério Público Federal no Ceará (MPF) e Controladoria-Geral da União no Estado (CGU).
A quase totalidade das ações no Ceará tem sido de atos extrajudiciais. São procedimentos administrativos, recomendações ou alertas que visam possibilitar aos gestores corrigir potenciais falhas e evitar que tenham de responder a processo por improbidade administrativa, por exemplo.
“O que a gente pode, a gente tem resolvido extrajudicialmente. São recomendações, ações institucionais, que são muito mais ágeis. Se o Estado ou o município já acata a orientação, evita que você tenha de judicializar. Temos priorizado a resolutividade. Quando não há resposta, a gente tem que judicializar”, afirma o promotor de Justiça Enéas Romero, que está à frente do Grupo de Trabalho do MPCE para acompanhamento das ações relacionadas à pandemia.
Impessoalidade
Para além da aplicação correta da verba e dos bens públicos, chamam atenção as fiscalizações a condutas vedadas a políticos em ano eleitoral, como a criação (publicizada em benefício próprio) de programas de distribuição de bens, valores e serviços.
“O município pode distribuir cestas básicas, máscaras, álcool em gel, pode mandar fazer a desinfecção das ruas e de determinados locais públicos, pode distribuir dinheiro para quem teve a fonte de renda afetada pelo isolamento: tudo isso é permitido. O que não pode é o gestor fazer a promoção pessoal em cima dessas ações”, explica o promotor Emmanuel Girão, coordenador do Centro de Apoio Operacional Eleitoral.
Em Ubajara, o promotor Maxwell de França Barros chegou a pedir o afastamento do prefeito Renê de Almeida Vasconcelos do cargo, no início de maio, por atos de promoção pessoal nas doações de combate à Covid-19. Imagens nas redes sociais, em canais oficiais da Prefeitura, mostravam o prefeito distribuindo álcool em gel e como o agente distribuidor de cestas básicas e outras medidas de suporte social, segundo o órgão.
De acordo com o MP, os atos de improbidade administrativa foram praticados pelo prefeito “antes, durante e depois de ele ter tomado ciência acerca de uma Recomendação que o alertava sobre a impessoalidade nas doações”. Durante o procedimento administrativo, foi dado ao prefeito o direito de responder à representação popular, o que não aconteceu.
A reportagem tentou contato com a Prefeitura de Ubajara, mas as ligações não foram atendidas pelo telefone disponibilizado no site da Associação dos Municípios do Ceará (Aprece). No site da Prefeitura, não há telefone disponível.
Conduta vedada
Em outros municípios também foram instaurados procedimentos de aviso aos gestores. Em Aracoiaba, Ocara, Ibiapina, Jaguaribara, dentre outros, o MP cobrou que os agentes públicos, tanto prefeitos, como vereadores, se abstenham de fazer uso promocional das respectivas imagens e ações ou com conotação eleitoral, quando na intenção de colaborar com o apoio a famílias em situações precárias e de vulnerabilidade, especificamente em decorrência de doações de bens ou valores.
“Em ano de normalidade, não é possível criar esses programas para distribuir benefícios de forma gratuita, mas, na lei, há três ressalvas: aqueles programas que já existiam e estavam em execução orçamentária em ano anterior, como é o caso do Bolsa Família. As outras duas exceções são os estados de emergência e de calamidade pública”, ressalta Emmanuel Girão.
No final de maio, o MP, através das Promotorias de Justiça de Jaguaretama e Jaguaribara, recomendou que a distribuição do vale gás de cozinha ou a entrega dos botijões nestas duas cidades não sejam utilizadas para promover candidato, partido político ou coligação. A Promotoria de Justiça solicitou também que a logística para entrega dos botijões nas residências das famílias seja feita pela distribuidora contratada e empresas por ela credenciadas e não por servidores municipais ou com participação diretos de gestores.
“Seria necessário o prefeito estar participando da distribuição de vale gás? Não. Quem tem de fazer isso são os servidores da secretaria responsável por isso. Daí ele vai pessoalmente, manda filmar, coloca nos canais oficiais da prefeitura e fica fazendo sua promoção pessoal. Isso incide em conduta vedada, que está na Lei das Eleições, e pode também causar improbidade administrativa”, destaca Girão.
“Todas as suspeitas que chegam ao conhecimento do MPCE são encaminhadas aos promotores de Justiça, que realizam as diligências necessárias para chegar à verdade dos fatos. Não é fácil realizar a investigação de tantos fatos complexos durante uma pandemia, que dificulta a realização dos trabalhos de campo. Além disso, como estamos em um ano eleitoral, o Ministério Público precisa ter o máximo cuidado para evitar que as suas ações sejam usadas para influenciar as campanhas municipais”, afirma o procurador-geral de Justiça Manuel Pinheiro.
Acompanhamento parte de esforço coletivo de órgãos
O levantamento das ações do MPCE nos últimos dois meses aponta cerca de 150 ações em 88 municípios. A maioria trata de procedimentos administrativos para acompanhamento de obras ou de contrato em caráter preventivo e sem indicativo de irregularidade ou ilicitude atuais e sem representar ingerência nas atribuições do Poder Executivo Municipal, segundo o MP.
Entre as ações preventivas está, por exemplo, uma recomendação do MPCE aos gestores da Prefeitura de Santana do Acaraú para que recurso federal no valor de R$ 92 milhões seja usado exclusivamente na área da saúde, no enfrentamento à pandemia. Além disso, foi requisitada cópia de todos os processos licitatórios e os respectivos contratos e comprovações das despesas realizadas com a verba.
Em Fortaleza, as contratações fiscalizadas pelo MPCE incluem as de instalação e gestão do hospital de campanha no Estádio Presidente Vargas e as das aquisições de respiradores, equipamentos de proteção individual (EPI) e outros insumos para uso no combate à Covid-19, por exemplo.
“Se há suspeitas de desvio ou denúncia, o Ministério Público já instaura um procedimento. Responsabilizar (quem cometeu infração) toma certo tempo porque uma investigação para provar que alguém desvia (verba pública) ou superfatura tem que analisar, ouvir todo mundo, com responsabilidade, ninguém investiga isso com uma ou duas semanas, e alguns processos são sigilosos porque envolvem questões cíveis e criminais”, ressalta o promotor Enéas Romero.
A situação de emergência tem permitido aos gestores públicos fazer contratos com dispensa de licitação, o que tem sido o foco também do Tribunal de Contas.
Nos últimos meses, o TCE já enviou pelo menos 18 ofícios solicitando documentações relacionadas a dispensas licitatórias em municípios maiores, como Fortaleza, Maracanaú e Iguatu para saber o que está sendo contratado.
“A primeira etapa desses ofícios foi quanto à questão mais voltada à materialidade, os maiores gastos, os maiores contratos. Vamos solicitar também, em rodada de ofícios, outros critérios, como o risco da empresa contratada, o critério de não aderência do objeto ao estado de emergência… Como é uma situação delicada a que os entes estão passando, a gente não pode sobrecarregá-los com muitos pedidos de uma vez só”, ressalta o assessor de Informações Estratégicas e Operações Especiais do TCE, Nikael de Carvalho.
Por Jéssica Welma
Fonte: Diário do Nordeste