A retomada da pressão por um impeachment de Jair Bolsonaro e a sucessão de falhas na condução do combate à pandemia de Covid-19 no país levaram o governo a ajustar o discurso e a ação na tentativa de barrar o recrudescimento da crise.
O mês de janeiro, que já tendia a ser difícil para o presidente por causa do fim do pagamento do auxílio emergencial, alavanca de sua popularidade em 2020, foi marcado pelo caos em Manaus devido à falta de oxigênio e por sucessivos reveses e sinais de desorganização na compra de insumos e no início da vacinação no país.
Como simbolismo da situação, coube ao principal adversário político, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), dar o pontapé inicial da vacinação em território nacional, no dia 17.
Nesta sexta-feira (22), pesquisa Datafolha trouxe o diagnóstico do momento, mostrando a elevação de oito pontos percentuais na reprovação ao governo Bolsonaro, que chegou a 40% e superou novamente a aprovação (que recuou de 37% para 31%).
Apesar de a maioria se declarar contra a abertura de um processo de impeachment (53% contra 42%), a diferença não é tão grande e tende a ser revertida caso haja manutenção de uma trajetória de piora da popularidade presidencial e elevação da tensão política.
No campo jurídico há ao menos 23 episódios em que dezenas de ações e manifestações de Bolsonaro podem ser enquadradas como crime de responsabilidade, em especial a violação ao direito constitucional à saúde.
Neste sábado (23), a oposição promoveu carreatas em cidades do país defendendo o impeachment, tese que encontra respaldo em vários setores da sociedade civil, embora ainda não com força o suficiente para alterar o cenário no Congresso.
Bolsonaro conta com o apoio do centrão e se movimenta fortemente para eleger o aliado Arthur Lira (PP-AL) para o comando da Câmara, em fevereiro. Cabe ao presidente da Casa decidir, monocraticamente, se dá ou não sequência a um pedido de impeachment.
Ainda no fim de semana passado o núcleo ideológico de Bolsonaro começou a compartilhar em grupos de Telegram —a nova rede social favorita da direita— a prestação de contas do que o governo federal fez pelo Amazonas.
Na segunda-feira (18), com apoiadores, Bolsonaro tentou mobilizar sua base ideológica. Responsabilizou a imprensa pelos problemas de sua gestão, orou com a claque e, no primeiro dia útil de uma semana com reuniões de emergência e fora da agenda oficial, chamou o ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, para discutir seu desempenho na emergência sanitária.
O ministro, que naquele momento já havia se tornado novamente alvo dos colegas de farda por ainda estar na ativa durante sua condução da Saúde, foi obrigado a assumir o desgaste diante da opinião pública.
Em uma entrevista coletiva convocada às pressas, Pazuello enumerou iniciativas do governo federal em Manaus, seguindo a linha do que bolsonaristas fizeram nos dias anteriores.
Mas o ministro também distribuiu respostas ríspidas a repórteres, admitiu que sabia do risco de escassez de oxigênio no Amazonas cerca de uma semana antes de pessoas morrerem asfixiadas em leitos hospitalares e culpou até o fuso horário pela dificuldade de negociar com a Índia a liberação de vacinas.
O general disse ainda que nunca defendeu a cloroquina ou qualquer tratamento precoce, o que é fartamente contraditado por vídeos e documentos. Após muita pressão, o Ministério da Saúde também retirou do ar na quinta-feira (21) um aplicativo indicado a profissionais de saúde e que recomendava os remédios sem eficácia comprovada contra a Covid.
Na sexta, Pazuello e os ministros das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e das Comunicações, Fábio Faria, foram pessoalmente ao aeroporto de Guarulhos acompanhar a chegada dos 2 milhões de doses da vacina de Oxford/AstraZeneca. Em um breve pronunciamento, eles disseram que governo está empenhado em salvar vidas.
O plano de desdizer o que já disse antes também foi adotado por Bolsonaro, embora de maneira mais tortuosa, já que, em uma única manifestação, ele emitiu sinais contraditórios, indicando que a versão que agora tenta sustentar não é exatamente aquela em que acredita.
Na segunda-feira, o presidente disse a apoiadores que “a vacina é do Brasil”, referindo-se à Coronavac, imunizante que já chamou de “vacina chinesa de João Doria”. Depois, porém, ao quebrar o jejum de sete meses sem falar com os jornalistas na porta do Palácio da Alvorada, colocou em dúvida a credibilidade dos imunizantes.
Com a intenção de reverter os danos à sua imagem, Pazuello contratou ainda um marqueteiro. Fábio Faria mudou-se para o Palácio do Planalto e instalou um gabinete de crise no segundo andar do prédio para facilitar a interlocução com Bolsonaro, que despacha no piso acima.
Faria também se juntou à ministra da Agricultura, Tereza Cristina, para tentar uma interlocução com a China, país que ainda não liberou a saída dos insumos farmacêuticos necessários para a produção da Coronavac no Instituto Butantan, em São Paulo.
O forte viés ideológico anti-China do chanceler Ernesto Araújo o obrigou a sair de cena na interlocução com a diplomacia chinesa.
O chanceler passou a última semana sob forte pressão, responsabilizado por auxiliares de Bolsonaro como corresponsável pelo atraso no envio de imunizantes da Índia e bombardeado por assessores militares pelo forte componente ideológico na política externa.
Diplomatas consultados pela reportagem dizem que é improvável que a China esteja, ao reter insumos em seu território, simplesmente retaliando o Brasil por causa de declarações consideradas ofensivas feitas tanto por Ernesto quanto pelo deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente.
Mas destacam que a falta de comunicação entre o Itamaraty e a missão diplomática do país asiático em Brasília é um obstáculo para qualquer aspecto da relação bilateral, o que inclui as vacinas.
Último seguidor do ideólogo Olavo de Carvalho no primeiro escalão do governo, Ernesto ganhou sobrevida após a Índia autorizar a exportação das vacinas de Oxford/Astrazeneca. Foi acompanhante de Bolsonaro na live de quinta-feira (21) e integrou a comitiva de ministros na recepção do avião com as doses. Bolsonaro não acompanhou a chegada dos imunizantes a São Paulo. Preferiu ir a um treino do Flamengo em Brasília.
Pessoas próximas ao presidente dizem que, por enquanto, Ernesto não deve ser trocado, mas o discurso da diplomacia brasileira tende a ficar em um tom mais moderado. O governo emitiu sinais neste sentido na última semana.
O presidente encaminhou uma carta felicitando Joe Biden por sua posse nos EUA e, na live semanal, o chanceler disse ao lado de Bolsonaro que “tem tudo para ser uma boa relação” por termos “muita coisa em comum com os Estados Unidos” e falou em “trabalhar juntos no meio ambiente”, seara em que o Brasil já foi pressionado pelo novo presidente americano.
Outro indicativo de possível mudança na postura diplomática foi a ida do secretário de Assuntos Estratégicos do Brasil, almirante Flávio Rocha, para dois dias de agenda na Argentina, país alvo de críticas e ironias recentes de Bolsonaro.
A visita, informou o gabinete do almirante, tem por objetivo identificar pontos de sinergia e cooperação estratégica em diversas áreas das relações entre os dois países.
Pazuello também não deve ser trocado agora. O presidente tende a segurá-lo ao menos até resolver os problemas com a vacinação, deixando a substituição para quando realizar uma reforma ministerial.
O centrão, que está de olho no posto, prefere assumi-lo quando a fase mais complicada tiver sido superada.
Fonte: Folhapress