Bilhões em obras públicas ancoradas em emendas do relator na Câmara, sem nenhuma transparência ou racionalidade. Áreas técnicas de agências reguladoras ocupadas por indicações políticas do governo e de sua base de apoio, referendadas pelo Senado. Piora ininterrupta dos indicadores de degradação ambiental na Amazônia, com declarado apoio de ministros e do presidente Jair Bolsonaro (PL).
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Essas são algumas das questões que passaram a ser citadas por investidores em reuniões em que avaliam a intenção de colocar dinheiro em projetos de longo prazo no Brasil. Destaque para os que atuam em infraestrutura e concessões, que pressupõem relacionamento com o poder público.
Segundo Claudio Frischtak, sócio e gestor da Inter B Consultoria Internacional de Negócios, especializada na área, esses itens agora se somam a antigos problemas que já estavam na mesa e não foram resolvidos: insegurança jurídica, tributação elevada e caótica, limitações de crédito, além dos riscos cambial e fiscal.
“Nos últimos três anos, o Brasil sofreu destruição reputacional no exterior por não conseguir acompanhar a mudança de mentalidade que está ocorrendo nos negócios”, afirma ele. “Empresas, fundos de investimento e de pensão, importantes investidores de longo prazo, estão incluindo o meio ambiente na análise de retorno do investimento. Quem insiste em ignorar isso vive em outro planeta.”
Para complicar, o governo reduziu o investimento em infraestrutura, considerado um indutor do investimento privado, e liberou parte do Orçamento para o Congresso.
“A qualidade do investimento público sofreu um enorme retrocesso com a adoção das emendas do relator como uma forma de financiar obras públicas”, afirma Frischtak. “É ruim, para falar o mínimo, que um bloco partidário seja responsável por distribuir o dinheiro público, de maneira fragmentada, por algum pressuposto político não explicado, sem nenhuma avaliação sobre a relevância e o retorno.”
A Carta de Infraestrutura da Inter B, que faz balanço dos investimentos nos últimos anos e projeções para 2022, traz números para ilustrar os efeitos desse ambiente.
O setor público investiu, em média, cerca de R$ 46 bilhões ao ano em infraestrutura de 2018 a 2021, e o setor privado, R$ 94 bilhões em média. Nos três anos anteriores, de 2016 a 2018, a média do setor público foi de R$ 57 bilhões, e a do setor privado, praticamente os mesmos R$ 94 bilhões.
Ou seja, enquanto o investimento público teve queda de 19%, o privado ficou igual. Os valores consideram o impacto da inflação.
Não é preciso ir longe no tempo para ver a mudança de patamar. Olhando os dados da consultoria desde a década passada, esses valores se distanciam dos picos. O setor público colocou quase R$ 105 bilhões em infraestrutura em 2010, e o privado chegou a investir R$ 119 bilhões em 2014.
Concessões atraem quem já atua no Brasil
Essa queda ocorre mesmo diante da boa carteira de projetos que o PPI (Programa de Parcerias de Investimentos) e o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) conseguiram estruturar, na avaliação de quem acompanha o setor.
Outros fatores favoráveis são continuidade —o ex-ministro e agora candidato ao governo de São Paulo, Tarcísio de Freitas, atuou na área nos governos de Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB) antes de ser escolhido por Bolsonaro— e a carência local por infraestrutura, o que por si só é uma oportunidade de grandes negócios.
No entanto, isso não tem sido suficiente para atrair novos interessados.
Apesar de Freitas apresentar os leilões de concessão como um ambiente fértil para atrair novos investidores durante a gestão Bolsonaro, as disputas geralmente envolvem empresas já instaladas no Brasil, que aproveitam para melhorar a posição em segmentos onde já atuam. É raro ver novos interessados, afirmam especialistas do setor.
Telefonia é um exemplo clássico. No leilão de 5G as principais faixas ficaram com Vivo, Tim e Claro, estrangeiros, sim, mas que operam no país há décadas. Há outros casos similares em diferentes setores.
O grande evento na área de rodovias dedicado ao investidor privado em 2021 foi a relicitação da Via Dutra. Atraiu apenas duas empresas locais, a Ecorodovias e a CCR —que já tinha a concessão e se manteve nela. Aliás, a dupla é presença constante nos leilões de transportes. Algumas rodovias ainda atraem eventualmente pequenas e médias empreiteiras regionais, reunidas em consórcios.
Em mais um ano, não houve maturidade institucional para resolver as devoluções das rodovias, que precisam ser relicitadas após os investidores terem desistido dos projetos. Estão à espera vários trechos da BR-040, divididos em dois projetos que cortam diferentes estados (RJ, MG, GO e DF), Concebra (BR-060/153/262), Autopista Fluminense (BR-101/RJ), Rota do Oeste (BR-163/MT) e MS Via (BR-163/MS).
Também é aguardada a licitação de trecho da BR-381/262 (MG/ES), conhecida como Rodovia da Morte, que já foi adiada quatro vezes.
Nem de longe há interessados para essas rodovias.
No caso das ferrovias, apesar de o governo alardear a modelagem de muitos projetos, o grande movimento recente foi a renovação antecipada dos contratos com empresas privadas que já atuavam nas linhas. Ainda assim, MRS Logística e FCA (Ferrovia Centro-Atlântica) não conseguiram assinar seus contratos.
O Pró Trilhos, que buscou ampliar e agilizar investimentos em ferrovias via autorizações, atraiu quase 30 projetos com cerca de 10 mil quilômetros. Na avaliação do mercado, porém, 80% deles tendem a micar por falta de condições financeiras de quem apresentou.
O grande projeto ferroviário da gestão bolsonarista é a Ferrogrão. Bandeira do agronegócio e muito defendida por Tarcísio, ela permanece no limbo por causa do seu alto risco socioambiental.
A concessão mais marcante nessa área, aliás, foi a da Norte-Sul, que já estava em formatação durante o governo de Michel Temer e ocorreu em março de 2019. A disputa teve apenas dois participantes, que atuam no setor: o consórcio VLI, formado por Vale, Mitsui, FI-FGTS e Brookfield, e a Rumo, do grupo Cosan, que saiu vencedora.
No setor de portos, ocorreram renovações de arrendamentos e leilões em áreas internas de terminais, normalmente disputados entre as empresas já instaladas no local. No de hidrovias, nada mudou, e ainda se aguarda uma legislação.
“Uma dificuldade para atrair estrangeiros para o Brasil é a obra, porque obra é risco para eles”, explica a advogada Letícia Queiroz, sócia e fundadora do Queiroz Maluf advogados, especializado em concessões e infraestrutura.
“Neste ano vai ficar mais difícil ainda, porque há um descolamento grande nos preços de insumos por causa da inflação e dos problemas de abastecimento.”
Um dos poucos setores em que se viu um estrangeiro foi o de aeroportos. No ano passado ocorreu a sexta rodada de licitação nessa área, quando foram oferecidos 22 terminais, divididos em três blocos chamados pelo mercado de “filés com osso”, por serem empreendimentos regionais.
A CCR levou dois blocos considerados mais atraentes. A Vinci Airports, do grupo francês Vinci, ficou com o lote que tinha sete aeroportos em cidades com movimento mais modesto na região Norte: Manaus, Tabatinga e Tefé (AM), Porto Velho (RO), Boa Vista (RR), Rio Branco e Cruzeiro do Sul (AC).
Ao assumir as operações neste ano, o grupo deu projeção global ao negócio por um outro aspecto. Anunciou que vai lançar um “plano de ação ambiental na Amazônia”, que inclui a construção de uma planta de energia solar e um programa para capturar as emissões do gás de efeito estufa dos mais de 50 aeroportos que administra em 12 países.
O governo federal ainda avalia o destino de aeroportos importantes que foram devolvidos pelos investidores anteriores —Viracopos (SP), Galeão (RJ) e São Gonçalo do Amarante (RN).
No ano passado, todo esse segmento de transportes recebeu o equivalente a 0,55% do PIB em investimento, valor abaixo da média das duas últimas décadas e longe do mínimo necessário para a modernização da infraestrutura, estimado pela Inter B em 1,75% do PIB.
Em outra frente, o novo marco do saneamento trouxe boas expectativas para os negócios na área. Foram quatro leilões no ano passado, que garantiram R$ 37,5 bilhões em investimentos. A vitrine foi a concessão da Cedae, no Rio de Janeiro, com destaque para a Aegea, que levou 2 dos 4 blocos.
Criada em 2010, a Aegea está em franca expansão numa área que tem pegada sustentável, por garantir água e esgoto tratados. Ela tem um acionista estrangeiro, o GIC, fundo soberano de Singapura, com quase 20% do capital. Mas quem se interessou pela empresa nesta nova fase foi a brasileira Itaúsa, que investiu R$ 1,3 bilhão para ter 10% de participação.
Apesar da euforia com as privatizações, estatais e autarquias municipais ainda serão responsáveis por 77,4% dos investimentos projetados para o saneamento em 2022, segundo o levantamento da consultoria.
“Investidor de infraestrutura não olha para o pé, mira o horizonte”, diz Luis Felipe Valerim Pinheiro, professor da FGV Direito SP e sócio do XVV Advogados, numa alusão ao fato de o setor não se importar com o curto prazo, mas com décadas à frente.
“No entanto, estar no Brasil parece hoje um voo cego para muitos, com um câmbio muito volátil, inflação em alta, taxas de juros ascendentes e ano eleitoral. Muitos investidores, especialmente os estrangeiros, preferem esperar.”
Retração de desembolsos é generalizada
Quando se olha os grandes números para além da infraestrutura, o Brasil registra os piores patamares de investimentos em décadas.
O volume de investimentos do governo federal, por exemplo, encerrou o ano passado equivalendo a 0,26% do PIB, segundo acompanhamento do Observatório de Política Fiscal do FGV IBRE (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas). O resultado é o mais baixo desde 2003 e 2004, quando os investimentos federais foram de 0,20% e 0,21%, respectivamente.
No entanto, o pesquisador Manoel Pires, coordenador do Observatório, chama a atenção para a enorme diferença entre os dois momentos. “Lá atrás, foi preciso fazer um ajuste fiscal no início do primeiro governo Lula, que levou à redução do investimento público num curto período, mas foi seguido de retomada”.
Agora, o que se vê são anos seguidos de retração generalizada.
“Ao que tudo indica, a redução do investimento público não chegou ao piso e vai cair mais ainda”, afirma Pires. Somando governo central, estados, municípios e estatais federais numa série histórica iniciada em 1947, o volume de investimentos totalizou 2,05% do PIB no ano passado. Trata-se do segundo menor índice, superando apenas o resultado de 2017, quando atingiu 1,94% do PIB.
Em parte, há uma redução de gastos para um ajuste fiscal no curto prazo, mas Pires visualiza uma transformação maior, de ordem estrutural. Segundo ele, a recessão e a mudança de governo federal em 2015 levaram a uma revisão, de fundo mais ideológico, do modelo econômico brasileiro.
“A ideia de reduzir a participação do Estado na economia foi posta em prática. Então, o setor público investe menos, o BNDES assume outras funções e buscam-se reformas para atrair capital privado”, diz Pires.
O maior exemplo desse reposicionamento é a drástica retração dos investimentos das estatais, que atingiu o menor valor da série histórica iniciada em 1995, explica ele. A Petrobras chama a atenção. No ano passado, executou 38% dos investimentos previstos, quando historicamente aplicava 90%.
“A estatística está demonstrando o efeito prático de uma decisão anunciada pelo governo, que era conter a atuação da Petrobras”, diz Pires.
Alguns analistas que acompanham a macroeconomia podem estranhar uma discussão sobre queda nos investimentos. Desde 2018, nas contas nacionais, o indicador que mede investimentos em bens e serviços que podem elevar a capacidade produtiva do Brasil, como máquinas e equipamentos, não para de subir. Estamos falando da FBCF (Formação Bruta de Capital Fixo) em relação ao PIB.
Em 2017, essa taxa caiu a 14,6%, o pior patamar da série iniciada em 1996. Porém, no ano seguinte, começou a subir, indo a 15,1% até chegar, no ano passado, em 19,2%. É um resultado surpreendente, pois supera a média dos últimos 25 anos, que está em 18,1%.
O pesquisador do FGV IBRE Gilberto Borça Júnior ficou intrigado com o comportamento do indicador. Debruçou-se sobre os dados e identificou itens que de alguma forma elevaram artificialmente o resultado do investimento nesses quatro anos.
Entre eles estão a importação de plataformas de petróleo da Petrobras, fabricadas aqui mesmo no Brasil, mas registradas no exterior e depois internalizadas, tudo na base da contabilidade. Aumentos de preços dos produtos usados para representar investimento produtivo, principalmente por causa da alta do dólar. O repique da construção civil, produzido na verdade pelo efeito formiguinha das reformas durante a pandemia, financiadas em muitos casos pelo auxílio emergencial.
No artigo publicado em blog do Ibre, ele faz o alerta que repetiu na entrevista à Folha. “Esses dados mostram que nem tudo que reluz é ouro, e que precisamos criar condições para elevar o investimento público, porque é ele que pode induzir o crescimento e criar melhores condições para o investidor privado.”
A taxa média anual de investimento, de 2018 a 2021, expurgados os eventos circunstanciais, estaria na casa de 16%, algo que não se via desde a década de 1960, segundo a série de dados do Cemec-Fipe (Centro de Estudos de Mercado de Capitais da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas).
O coordenador da entidade, Carlos Antonio Rocca, conta que eles também têm informações sobre todas as empresas de capital aberto, algumas desde 2005. Segundo pesquisa que consolida esses dados, foi identificado que dois fatores respondem por 70% das decisões de investimentos no Brasil: a projeção de taxa de retorno do capital investido, com critérios que variam de empresa a empresa, e o crescimento do PIB nos três anos seguintes à análise.
“Dado o resultado, é nítido que o cenário não é estimulante para as empresas”, diz Rocca. “Ainda assim, não temos hoje nenhuma política pública que incentive investimento e crescimento.”
Fonte: Folhapress