O anúncio foi feito em um comunicado conjunto dos ministérios das Relações Exteriores, da Saúde, das Mulheres, dos Direitos Humanos e da Cidadania, afirmando que o Consenso de Genebra “contém entendimento limitativo dos direitos sexuais e reprodutivos e do conceito de família”. A visão, diz a nota, “pode comprometer a plena implementação da legislação nacional sobre a matéria, incluídos os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS)”: “O governo reitera o firme compromisso de promover a garantia efetiva e abrangente da saúde da mulher, em linha com o que dispõem a legislação nacional e as políticas sanitárias em vigor sobre essa temática, bem como o pleno respeito às diferentes configurações familiares.”
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O Consenso de Genebra foi criado em 2020 por Trump — em uma declaração coautorada por Bolsonaro — para tentar bloquear votações em fóruns internacionais sobre educação sexual e direitos reprodutivos, alegando que abrem caminho para a legalização do aborto. Os quatro pilares do grupo são “preocupação com a saúde da mulher, proteção da vida humana, fortalecimento da família e defesa da soberania das nações na criação de políticas próprias de proteção à vida”.
O pacto tinha originalmente 34 países signatários, quase todos à época governados por regimes ultraconservadores ou autocráticos. Há países internacionalmente criticados por violações dos direitos humanos como o Egito, a Arábia Saudita e o Iraque. Também fazem parte Polônia e Hungria, onde reveses no Estado de Direito causam dores de cabeça para a União Europeia.
Com a saída, o Brasil segue os passos de outros países que tiveram mudanças de comando: o presidente americano, Joe Biden, tirou Washington do Consenso de Genebra imediatamente após sua posse, em janeiro de 2021. O presidente colombiano, Gustavo Petro, fez o mesmo ao assumir em agosto do ano passado.
Em novembro, dias após a eleição, mais de cem organizações da sociedade civil assinaram um manifesto pedindo que Lula tirasse o Brasil da aliança. Afirmavam que a participação nacional “manchava a trajetória da política externa brasileira em matéria de direitos humanos”.
Novos pactos
Reforçando a mudança de postura, o Brasil de Lula se juntou ao Compromisso de Santiago, instrumento regional para responder à crise da Covid-19 com igualdade de gênero. Ele foi adotado em 31 de janeiro de 2020, durante a XIV Conferência Regional sobre a Situação da Mulher da América Latina e do Caribe (CRM/CEPAL), e Bolsonaro preferiu ficar de fora.
Aderiu também à Declaração do Panamá, cujo objetivo é construir pontes para um novo pacto social e econômico gerido por mulheres, aprovado pela 39ª Assembleia de Delegadas da Comissão Interamericana de Mulheres da Organização dos Estados Americanos (OEA) em maio de 2022. Ambos pactos, disseram os ministérios, darão ao Brasil “ferramentas valiosas” para iniciativas regionais e hemisféricas, “fortalecendo a interlocução técnica e o potencial para cooperação multilateral”.
“[Os documentos] estão plenamente alinhados com a legislação brasileira pertinente, em particular no que respeita à promoção da igualdade e da equidade de gênero em diferentes esferas, à participação política das mulheres, ao combate a todas as formas de violência e discriminação, bem como aos direitos sexuais e reprodutivos”, diz a nota.
O objetivo da mudança de posicionamento é “promover e defender os mais altos padrões dos direitos humanos e liberdades fundamentais”, diz a nota. Na prática, o que Lula faz é também pôr a política externa brasileira de volta nos rumos que historicamente seguiu — como a defesa do multilateralismo, dos direitos humanos e da igualdade —, mas que foram marginalizados nos últimos quatro anos.
Guinada
Em 2019, por exemplo, o Brasil se absteve na votação de trechos de uma resolução debatida na ONU para garantir saúde sexual e reprodutiva a pessoas afetadas por crises humanitárias. Em 2020, também optou por não opinar em uma votação sobre discriminação de gênero no Conselho de Direitos Humanos, mostrando objeção específica ao acesso a métodos contraceptivos.
Em 2021, o governo de Bolsonaro não participou de uma iniciativa que pedia a inclusão de serviços de saúde sexual e reprodutiva nos planos de combate à pandemia. No ano passado, o Brasil tentou vetar outra resolução no mesmo sentido, além de rejeitar recomendações em matérias de direitos reprodutivos na Revisão Periódica Universal do Conselho de Direitos Humanos da ONU.
Na esfera doméstica, a então ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos à época, a senadora Damares Alves (Republicanos-DF), teria atuado para impedir o aborto legal de uma menina de 11 anos, estuprada por seu próprio tio. Houve ainda uma portaria do Ministério da Saúde, posteriormente questionada pelo Supremo Tribunal Federal e atenuada, que obrigava profissionais da saúde a notificar a polícia quando houver procura do serviço de aborto legal.
O aborto no Brasil só é permitido hoje em três situações: quando há risco de morte para a mulher, causado pela gravidez; a gravidez é resultante de um estupro; ou se o feto é anencefálico.
O presidente eleito Lula, quando ainda era pré-candidato em abril, chegou a defender que as mulheres tenham o direito de fazer aborto, afirmando que a questão deveria ser tratada como um tema de saúde pública. A declaração, contudo, teve repercussão negativa entre segmentos conservadores e evangélicos, e fez o petista tentar driblar o tema durante a maior parte da campanha.
Fonte: O Globo