Estava um clima tão descontraído —dentro dos padrões do rito diplomático— que, a certa altura, Celso Amorim esqueceu que seu interlocutor era russo e começou a falar em português. Do outro lado de uma mesa gigante no Kremlin, estava Vladimir Putin, que por uma hora conversou com o enviado de Lula.
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O russo riu. Foi uma quebra de gelo que, para o assessor especial da Presidência e ex-chanceler, cristalizou a receptividade que nem ele esperava. Amorim, afinal, foi à Rússia vender a Putin a ideia de Lula sobre o “clube da paz” para frear a guerra em curso na Ucrânia.
A viagem representou o mais recente aceno da política externa brasileira novamente sob a batuta de Lula. Os cem primeiros dias do novo Itamaraty foram marcados por acenos múltiplos em várias direções. O desafio, agora, é esclarecer o que será prioridade.
Com a ressaca do bolsonarismo —um período que apartou o Brasil da China, seu principal parceiro econômico, e tornou o país quase um pária— o clima geral sobre a agenda externa capitaneada por Lula, pelo chanceler Mauro Vieira e por Celso Amorim é de otimismo.
Lá fora
Mas diplomatas e acadêmicos salientam que, daqui para a frente, é preciso medir a materialidade dessas propostas e, claro, quais sairão primeiro do papel. “Quando há uma multiplicidade de prioridades, pode-se incorrer em erros de concretização e materialização de alguns projetos”, diz Hussein Kalout, pesquisador de Harvard e membro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).
Em três meses a pasta fez acenos à América do Sul —em busca da dita “ideologia da integração”— aos EUA, à China —para onde Lula viaja nesta semana—, à União Europeia, à agenda ambiental, à igualdade de gênero e à Guerra da Ucrânia.
Foi também um período inicial de ampla agenda no exterior. Enquanto Lula esteve em Portugal, antes mesmo da posse, na Argentina, no Uruguai e nos EUA, Vieira fez, além dessas, outras cinco viagens oficiais —como à Alemanha, para a Conferência de Segurança de Munique, e a Índia, para reunião do G20.
Ao todo, segundo levantamento da Folha junto ao Itamaraty, foram 65 encontros bilaterais de Vieira com chanceleres e ministros desde 1º de janeiro. Ao Brasil, já vieram seis chanceleres nestes cem dias —de Japão, Grécia, França, Portugal, Uruguai e Angola.
Figuras próximas aos principais formuladores da atual política externa argumentam que a multiplicidade de acenos se trata, na verdade, da construção de pontes necessárias para fazer avançar áreas prioritárias, como a agenda climática, o combate às desigualdades e a mediação da paz e da democracia (na Ucrânia e em outros lugares, como na Venezuela, para onde Amorim também foi enviado por Lula).
O próprio chanceler adota essa linha. À Folha Vieira afirma que, nestes cem dias, o foco inicial foi “normalização” das relações com o mundo. “Transmitimos aos nossos parceiros uma mensagem clara, de que o Brasil retomou suas linhas tradicionais de política externa, como parceiro comprometido sempre com o diálogo.”
“Com os canais já plenamente restabelecidos, o momento é o de trabalhar no seguimento e na retomada de projetos com nossos vizinhos sul-americanos, com a América Latina como um todo, com os EUA, China e Europa, e também com nossos parceiros africanos”, acrescenta o chanceler.
Os cem primeiros dias também não deixaram de registrar certos entraves. Nos EUA, onde Lula esteve em fevereiro, a frustração se deveu ao valor enxuto destinado pelo governo de Joe Biden ao Fundo Amazônia: US$ 50 milhões (R$ 260 milhões).
Mas a proximidade da administração do democrata à do petista não deixa de ser vista com bons olhos por especialistas na agenda climática. “É impressionante como a filantropia internacional se moveu [desde a eleição de Lula]”, avalia Renata Piazzon, membro da Coalizão Brasil Clima e diretora do Instituto Arapyaú.
Ela diz que caberá ao Itamaraty, em articulação com outros ministérios, saber aproveitar o momento. “Nos próximos dois ou três anos, temos que surfar nessa onda de olhares voltados para o Brasil, porque ela vai passar rapidamente”
China, terra do meio
Houve, ainda, a resposta à pressão da Alemanha —cujo premiê, Olaf Scholz, veio ao Brasil— para não enviar armas à Ucrânia. E as rusgas com Washington após a decisão de receber navios de guerra do Irã.
Com a União Europeia, o esforço é para tirar do papel um acordo comercial com o Mercosul gestado há mais de 20 anos. A expectativa vendida por Lula, de assinar as tratativas finais até o meio do ano, parece compartilhada por parte da diplomacia do bloco europeu. Em certa medida, o arranjo vem também com a expectativa de fazer deslanchar a aliança sul-americana. Há, no entanto, arestas a serem aparadas com o Uruguai, que publicamente manifesta querer arranjos por fora do Mercosul, em especial com a China.
Lula, aliás, embarca para o gigante asiático na terça (11) —iria no último dia 26, mas a viagem foi adiada pelo quadro de saúde do presidente. Em Pequim, devem ser publicizados mais de 20 acordos bilaterais.
Com a viagem, Lula também almeja mostrar “equilíbrio pragmático” entre as duas principais potências globais, EUA e China. A ideia é enfatizar a defesa de um mundo multipolar, sem alinhamento automático a Washington ou Pequim. A Guerra da Ucrânia, por óbvio, também será posta em discussão.
Mas a proposta de Lula para o chamado “clube da paz” é vista com pouco crédito mesmo entre alguns aliados. A avaliação é de que, a despeito do crédito de colocar o Brasil como um interessado em atuar pelo fim do conflito, não há materialidade na proposta.
Para o ex-chanceler Celso Lafer, a medida dialoga, em partes, com “um componente de antiamericanismo da instintiva tradição de correntes do PT”. “E propicia menor abertura para a tragédia da Ucrânia e da sensibilidade política dos que a respaldam”, diz.
“A credibilidade do Brasil como um terceiro em prol da paz não aumenta com a viagem de Amorim a Moscou, não acompanhada de prontas e explícitas iniciativas em relação à Ucrânia”, acrescenta Lafer. “Correm o risco de serem vistos como um terceiro aparente, que não é neutro e busca se beneficiar de um conflito que é pluridimensional.”
Amorim, depois de retornar da Rússia, argumentou à Folha que um cessar-fogo realmente não está na agenda imediata. Mas sinalizou a vontade de Brasília de se mostrar disponível para quando houver a possibilidade de esboçar um plano de paz.
Para Kalout, “antes da paz, que não está dada, o Brasil pode ser proponente de ações humanitárias”. “Isso é muito mais importante no momento. O Brasil está fazendo todo um movimento tático para garantir um assento na mesa. Mas pode não ser da forma como o Brasil espera. É preciso recalibrar o discurso.”
Outro ponto sensível tem sido a relação com ditaduras como Venezuela e Cuba. Enquanto o governo Lula parece querer ser um dos mediadores de acordos entre regime e oposição em Caracas, o discurso sobre Nicarágua sofreu alterações após Daniel Ortega ser acusado por um comitê da ONU de práticas nazistas.
Brasília chegou a ofertar nacionalidade aos mais de 300 expatriados de Ortega e tem manifestado preocupação com o contexto regional, mas evitado críticas mais assertivas à ditadura centro-americana.
Outra frente abraçada no ministério foi a igualdade de gênero. Para enviar uma mensagem aos parceiros internacionais, a pasta criou o cargo de alta representante para temas de gênero. A escolhida foi a diplomata Vanessa Dolce de Faria. O tema ganha contornos mais sensíveis, porém, nas fileiras do próprio Itamaraty, onde há pressão crescente por paridade. Entre as diplomatas, a visão é de que a pasta tem adotado boas políticas, mas que para isso tem sido necessária pressão constante e pública.
Há também um receio de que as esparsas e ainda raras nomeações femininas sejam uma espécie de token —símbolo feito para atenuar demandas e reclamações. O temor foi expressado em carta enviada pela embaixadora Irene Vida Gala ao senador Renan Calheiros (MDB-AL), presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado.
No texto obtido pela reportagem, Gala, presidente da recém-fundada Associação das Mulheres Diplomatas Brasileiras, aponta que, de 23 indicações para os maiores postos diplomáticos, apenas uma é feminina —Maria Luiza Viotti, em Washington. Pouco depois da pressão, a diplomata Claudia Vieira Santos foi indicada para a Agência Internacional de Energia Atômica, em Viena.
“Tem de haver pressão continuada da nossa parte e reconhecimento, por parte da chefia do Itamaraty, de que eles precisam conversar com a gente”, diz Gala. “Não adianta a chefia do ministério nos demonizar ou desqualificar como lideranças na questão de gênero. As diplomatas têm apoio dentro do governo e na sociedade civil.”
Na última semana, o Itamaraty iniciou ciclos de conversa sobre gênero, raça, pessoas com deficiência e pessoas LGBTQIA+. No discurso de abertura, Mauro Vieira reconheceu a necessidade de avançar na inclusão. “O Itamaraty reproduziu discriminações e preconceitos herdados do colonialismo e da escravidão. Esperamos, a partir desse diálogo, seguir avançando na dimensão étnico-racial”, disse.
Para os próximos meses, também estarão na agenda da diplomacia brasileira a organização do encontro de líderes do G20, a partir de dezembro, a ser sediado no Brasil, e da cúpula dos países amazônicos, prevista para agosto. “Buscaremos respostas conjuntas para os desafios da sustentabilidade e da criminalidade ambiental”, afirma o chanceler.
Fonte: Folhapress