Se somos todos um, somos também Gilberto Gil, que celebrou nesta quarta-feira (26) seus 77 anos de vida. Ele conversou com o Vida&Arte sobre Deus, gratidão, fé, paz, a felicidade e as lembranças de uma vida cheia de grandes conquistas desde que saiu da pequena Ituaçú-BA para conquistar o Mundo.
O “tempo é rei” e o dele não para. Gil acaba de receber o “grande prêmio da crítica” da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e está prestes a embarcar para Europa, onde visitará 11 países e fará 21 shows da turnê “OK OK OK” . Em agosto ele será “dançado” pelo Grupo Corpo, para quem criou composições inéditas do espetáculo que leva seu nome. “Gil” estreia dia 7/8 em São Paulo. Da dança para ópera, ao lado do maestro italiano Aldo Brizzi, ele compôs 40 músicas para a ópera “Negro Amor” inspirada no poema do século XII “Gita Govinda” de Jayadeva Goswani e traduzido por Rogério Duarte.
Sua vida se confunde com sua vasta obra musical e que, para a nossa alegria, não para de ser recriada a todo e qualquer momento. Viva Gilberto Passos Gil Moreira e sua mente inspirada e inspiradora.
O POVO – Os sonhos da sua infância ainda continuam sempre presentes com você? Como você dizia na abertura do documentário “Tempo rei”, que visitando Ituaçu aos 45 anos aquelas memórias estavam sempre com você, esses sonhos ainda acontecem, eles ainda te visitam?
Gilberto Gil – Sim, ainda sonho frequentemente com Ituaçú, a mesma coisa, a cidade, os dois bairros principais, aquelas pessoas importantes do lugar, os meninos com quem eu brincava, tudo isso ainda sonho muito, frequentemente. Já tem 70 anos quase que eu saí de lá.
O POVO – Você também dizia que, naquela época, você tinha um vislumbre para além daquelas montanhas. Existia ali alguma sensação de que as coisas aconteceriam. O que você sentia que faria com que você saísse daquele lugar e chegasse tão longe?
Gilberto Gil – Primeiro a minha própria família, porque tanto meu pai quanto a minha mãe eram de Salvador e foram para lá exatamente quando se formaram, meu pai em medicina e minha se formou como professora. Eles foram para o interior naquela época, mas voltavam sempre por que seus familiares ainda permaneciam em Salvador. Então eu, desde pequeno, com um, dois anos de idade, sempre voltava a Salvador nas festas de Natal, Ano Novo. Eu me habituei com essa saída para a cidade grande. Salvador já era uma das maiores cidades do Brasil e com todos aqueles traços culturais da Bahia. Eu já tinha uma coisa de sair. Tanto meu pai quanto a minha mãe programaram que eu e minha irmã, um ano mais nova, sairíamos de Ituaçú para estudar em Salvador. Essa é um das razões também de eu só ter voltado lá 40 e tantos anos depois.
O POVO – E você consegue perceber algo que você traz na sua personalidade daquela criança que vivia naquela cidade? O que tem do Gil menino no Gil de hoje?
Gilberto Gil – A gente traz a infância com a gente, não é? Eu acho que é uma coisa comum a todas as pessoas, especialmente infâncias que foram felizes, com um entorno afetivo, interessante e tudo mais. Eu acho que tudo que há de um menino em mim é um pouco porque sou muito criança ainda. Se você compara com o que é considerado dimensão adulta, o modo adulto de ser, a maturidade etc. Eu não sou muito isso não, eu tenho muito do infantil ainda por causa dessa introspecção, que eu não diria nem permanente, mas periódica, frequente. A viagem para dentro de si e as perguntas como “mas o que é que eu sou?”, “para onde é que eu vou?”, essa criança me acompanha de certa forma e acho que vai me acompanhar a vida inteira.
O POVO – Imagino que o próprio entorno do lugar e o ambiente está na sua música, está na sua entranha artística.
Gilberto Gil – Muito, muito, tem uma música “Procissão” que foi uma das primeiras, dizia: “Olha lá vai passando a procissão, se arrastando que nem cobra pelo chão. As pessoas que nela vão passando, acreditam nas coisas lá do céu…”. É uma música inspirada pelas procissões que eu via lá na festa da padroeira. Muita coisa, muito daquelas serras ali entorno, muito dos frutos. O tamarindo, por exemplo, toda vez que eu vejo me transporta imediatamente. É lá, é defronte da minha casa, aquele pé de tamarindo enorme que tinha ali.
O POVO – E ainda tem uma nostalgia do passado ou você pensa no hoje e projeta para o amanhã? Você tem esse passado te visitando?
Gilberto Gil – Como disse há pouco, o fato de aquilo tudo me acompanhar até hoje, não dá para ter saudade nesse sentido da perda, de fazer falta e de precisar daquilo se não vou estar diante de um vazio ou qualquer coisa do tipo. Esse tipo de saudade eu não tenho. Eu ainda sonho frequentemente com Ituaçú como se eu ainda estivesse lá e eu já adulto, hoje em dia. Nunca me separei.
O POVO – Saindo um pouco do passado, vamos para esse “aqui e agora”. qual a sua visão de mundo hoje? Como é que ela se reflete em sua alma?
Gilberto Gil – Quando eu era menino e ainda além, na juventude, e até bem pouco tempo de vida adulta e dita madura, eu ainda tinha muitas ilusões em relação ao mundo, ainda sonhava, idealizava um mundo que depois de muitas transformações chegaria a ser um mundo idílico, de sonho. Nem diria um mundo de perfeição, mas de muita harmonia, de muita capacidade de integração entre os homens. E eu, depois mesmo da maturidade, tendo que encarar os grandes problemas da vida e os próprios existenciais e os problemas do entorno, os sociais, as grandes dificuldades de estabelecer uma conciliação e uma concórdia entre todos os homens, eu fiquei… Não diria que eu tenha ficado pessimista e que eu tenha saído de um otimismo idealizado para um pessimismo. Mas, hoje em dia, eu tenho uma noção bem clara de que a imperfeição é a medida do homem. (risos).
O POVO – Então vamos falar do “Expresso 2222” que partia para além do ano 2000. A gente já ultrapassou quase 20% do século 21, já está vivendo para além do anos 2000. Ali existia uma projeção de futuro, que parecia distante, mas agora já estamos naquele futuro. Você tem uma projeção de futuro para médio e longo prazo?
Gilberto Gil – O futuro ficou urgente. Aos 77 anos de idade o futuro ficou muito próximo, porque muita coisa já virou passado na minha vida. Então o presente é esse inqualificável, o presente é aqui e agora, é imediato e não há o que dizer. Ele é a gente, é esse dado vital, o vitalismo profundo. Já o futuro é a projeção, o desenrolar e aí, aos 77 anos de idade, o futuro fica logo ali, daqui a pouco (risos). Além disso, fica em aberto, não é mais aquilo que você almeja, que você quer e constrói. Para mim não é mais construir o futuro. Só há agora me deslocar no presente para o encontro permanente com o futuro. O futuro é permanência para mim agora.
O POVO – Acredito então que o seu presente tem mais sabor, com essa urgência de ser vivido.
Gilberto Gil – É só vida, a vida é o presente.
O POVO – Você cantou a paz tão bem e a gente tem vivido nesse “caos perfeito”. Como é que você consegue, diante deste quadro, encontrar sua paz interior, encontrar-se no eixo nesse mundo totalmente fora de prumo?
Gilberto Gil – Na música “A Paz”, que fiz com João Donato, alguns dos versos dizem “Só a queda faz nosso amor em paz”. A paz é uma escolha no meio de tudo, uma escolha que é propiciada primeiro por essa vontade, esse impulso, esse empenho em querer, enfim de estar em paz e, depois, pelo fato que só é possível em meio a tanta dificuldade, de tanto desencontro, de tanta desavença, dificuldade… Só mesmo a busca da paz para dar um equilíbrio, para lhe arremessar fora desse poço do desespero, dessa coisa da desesperança. É uma busca permanente e, em muitos casos, para muitas pessoas. É um processo de produção, você tem que produzir a paz. No meu caso, por exemplo, por que é que eu fui fazer Yoga? Por que fui procurar disciplinas espirituais? Por que fui procurar nas filosofias várias, as do oriente, etc? Porque eu fui procurar nelas algum esclarecimento do significado do que é que somos, de onde viemos, para onde vamos. Quer dizer, essa busca, essa produção da paz como falei, vai fazendo com que ela se concretize, com que ela vire pedra. (risos).
O POVO – E imagino que você tenha usado esse mecanismo quando você foi preso e ficou ali compondo, fazendo música e bebendo dessa filosofia hinduísta, védica.
Gilberto Gil – É, e o vedanta e o budismo, o zoroastrismo, o sufismo, todas essas coisas, eu sempre fiquei curioso em saber como é que os homens queriam saber, o que é que foi possível a eles saber. Eu sempre fiquei curioso em relação a essas coisas e acabei aprendendo muito nesse sentido. Não que você tenha lições que você decore e possa aplicar, mas você aprende a viver com todos esses sábios, todos esses homens que renunciaram a isso e àquilo para poderem buscar o entendimento do sentido da vida. Essa é a paz que eu tento produzir todo dia.
O POVO – A meditação ajudou em algum aspecto em algum momento?
Gilberto Gil – Muito, porque a meditação é essa busca, essa tentativa de afastar-se do turbilhão, dos sentimentos e dos pensamentos, dessa vertigem permanente do “eu quero, o que não quero?”, o eu, o ego tentando ali dominar e predominar sobre o conjunto do seu ser.
O POVO – Isso se confunde com o “andar com fé eu vou que a fé não costuma faiá”, Como é que a fé te ajudou até aqui nessa caminhada.
Gilberto Gil – Primeiro propriamente isso, a fé que existe aí, as religiões, os credos, as várias dimensões devocionais, as ideias do divino, enfim das divindades que estão aí nessas escolas religiosas todas, isso tudo foi também um elemento importante, a fé dos outros. O que é que a fé é no mundo? E o que é que ela pode ser em mim e aí… A fé está na maré, na cobra coral, está no sim e no não, está nisso, está naquilo. Ou seja está na própria negação, está na própria ultrapassagem dessa dimensão exígua da pequena fé. É a saída da pequena fé, para a grande fé, aquela que abraça a tudo, que é o grande existente inominável, sem nome, é o Deus desconhecido. É aquilo que Gandhi dizia: “Deus não tem religião”.
O POVO – E você conseguiu formar um modelo do divino? Uns temem Deus inquisidor, outros o que permite tudo e resolve tudo. Qual é o Deus que você conseguiu trazer até aqui?
Gilberto Gil – O meu é um “lego”, sabe? Que vou fazendo com milhões, bilhões, trilhões de peças e ele nunca está pronto. Ele nunca é! Ele é um pedaço de tanta coisa, que desmonta, troca daqui. “Deus agora ficou parecido com isso, Deus agora desapareceu de repente”, entende? Daqui a pouco ele volta, na forma de súplica, na forma de compaixão, na forma de amor, de medo, volta na forma de pena. Volta de tantas formas, de alegria, de júbilo, de tantas coisas. Deus é tudo !
O POVO – Você acabou de falar que Deus e amor talvez sejam coisas correlatas. Consegue definir isso? Afinal de contas, o que é o amor?
Gilberto Gil – Tem uma canção minha que diz, “amor é tudo que move”. É a grande dinâmica da existência e da vida em todos os sentidos, desde as estrelas e de todas as galáxias, os buracos negros. Esse revolver permanente da matéria e a imaterialidade. Tudo. O silenciar profundo. Todas essas coisas.
O POVO – Você e toda aquela sua geração da “paz e amor” foi como que tivessem enchido um “balde de leite”. Parece que chutamos esse balde. A internet acaba deixando isso tudo mais latente. Se antes ainda inventavam perfis falsos, hoje as pessoas assumem que estão colocando o dedo na cara do outro, falando mal e querem se dividir, se tornam odiosas em relação as diferenças. Você acha que ainda é possível acreditar na paz e no amor ou isso é utópico?
Gilberto Gil – Eu acho que o que aquela geração tentava expor era essa dimensão para além do conflito humano, para além do apego, da necessidade. Era amor no sentido amplo. Era a hora de falar do amor, fazer o amor, promover o amor, cantá-lo, escrevê-lo, vivenciá-lo, para além da carência humana. Mas sobre isso que você diz, a carência sempre volta, e é difícil as pessoas se libertarem para poderem entrar nessa fruição, dessa “fluição” amorável de forma permanente, porque a gente tem isso, que eu estava falando. Deus é medo também, Deus é terror… É tudo isso que está aí hoje. Então todo aquele alumbramento que caracteriza aquela juventude “paz e amor”, acho que aquilo não se desfaz, aquilo é essência da própria condição humana. Só que a condição humana além da essência, tem todas as outras coisas, suas camadas, crostas, suas capas, seus véus. O ódio, o destemor de Deus, essas coisas são esses véus, essas capas. Hoje em dia nós estamos em muita materialidade. As pessoas ficaram muito submetidas a essa coisa do consumo, da acumulação dos bens materiais, do dinheiro. Essa crosta submete essa essência “amorável”. Mas ela está lá dentro, está dentro de todos nós.
O POVO – Comparando os períodos históricos de lá e cá, você vê que está cada vez mais difícil falar em paz e união. Você vê povos inteiros atravessando fronteiras, gente criando muros. Ainda é possível acreditar nesse mundo ideal de paz entre povos?
Gilberto Gil – Aquela juventude era uma juventude para quem a paz era um dado ideológico, era uma grande ideia a ser assumida, Hoje não, está todo mundo mais preso nesse chafurdar nessas lamas várias que têm por aí.
O POVO – Você já chegou a se perguntar “o que é que eu aprendi”? Você tem essa percepção de qual foi a lição?
Gilberto Gil – Eu entendo de forma diferente do que eu entendia no passado. Muita coisa que eu na infância não entendia de modo algum, que hoje em dia entendo, mas também todas essas etapas vão estabelecendo um desentendimento cada vez maior de tudo. Quer dizer é o vazio que vai preenchendo tudo. Estou cheio de vazio, cada vez mais cheio de vazio, cada vez mais interrogativo em relação a mim mesmo e em relação à existência. E é isso, vamos aprendendo o que está escrito lá no portal de Delphos: “sei que não sei”.
O POVO – A busca pela felicidade, essa busca eterna de todos nós, ela ainda é cara a você?
Gilberto Gil – É só o que se faz, é só o que eu faço. O remédio para a dor, o bálsamo para a alma ferida, a cura para os males do corpo. A felicidade é isso, essa procura permanente por melhora, por estados melhorados de vida, felicidade é isso. É você saber que a vida já é o instrumento em si que lhe proporciona outros instrumentos com os quais você vai pintando ali, cinzelando acolá, entalhando ali, caiando acolá, cimentando, fazendo as coisas que vão lhe trazendo bem estar. Felicidade é viver bem e viver bem é processo, uma busca permanente. É o que já falei aqui, é uma produção.
O POVO – E a gratidão? Ela faz parte do cimento dessa construção?
Gilberto Gil – Fundamental! Ainda outro dia eu estava falando para mim mesmo, em relação a um momento que eu estava vivendo e uma reflexão que eu estava fazendo e me veio a sensação muito clara de que, se eu pudesse reduzir tudo que sai de dentro de mim para fora, eu resumiria numa palavra que é exatamente “gratidão”.
Fonte: O Povo