Encontro Wolney Oliveira no Aeroporto Pinto Martins. Voo rápido rumo a Juazeiro do Norte. Guardo lembranças de ter ido ainda criança. Espiava naqueles monóculos fotos da família no Horto. Gente feliz. Padim Ciço. Parecia um pequeno filme. Tecnicamente é a primeira vez no Cariri.
O intuito é acompanhar, com exclusividade, quatro dias de filmagem do documentário “Lampião, o Governador do Sertão”. A empreitada é ambição antiga do cineasta cearense. Explica-se. Por volta de 2006, o filme estava engatilhado e já contava com um bom número de entrevistas gravadas.
A pólvora explodiu no telefonema do amigo e pesquisador João de Sousa Lima. Direto de Paulo Afonso (BA), o contato afirmava que dois remanescentes do famoso bando de Lampião (1898-1938) foram identificados. “Wolney, achei Durvinha e Moreno”, alertou a fonte.
Eram as alcunhas de Antônio Ignácio da Silva e Durvalina Gomes de Sá. O trabalho ganhou rumos. “Precisava contar a história de quem estava vivo. Quem estava morto podia esperar um pouco mais”, resgata o diretor. O contato com os ex-cangaceiros durou felizes quatro anos. Nascia, assim, “Os últimos Cangaceiros” (2011).
Entre outros projetos, como o recente “Os Soldados da Borracha” (2019), Wolney percebeu a necessidade de voltar ao encalço de Lampião. Tudo começou com uma carta. Corria 1926 e a missiva endereçada ao então mandatário de Pernambuco, Júlio de Melo, evocava assunto dos mais urgentes.
“Eu que sou capitão Virgulino Ferreira Lampião, Governador do Sertão, fico governando esta zona de cá por inteiro, até as pontas dos trilhos em Rio Branco”. As linhas de Virgulino continuavam: “E o senhor, do seu lado, governa do Rio Branco até a pancada do mar no Recife”.
Atrevimento ou desejo de paz, de certo, as palavras do Capitão seguem reverberando 90 anos depois. A missão do documentário é decifrar as influências do cangaço na produção cultural brasileira e mundial. No avião, o diretor da Casa Amarela Eusélio Oliveira e do Cine Ceará encara a janela e suspira. “Cara, imagina. Lampião reinou 20 anos e naquela época, andava isso tudo, às vezes carregando 40 quilos em arma, joia, o caramba”.
Além das raízes familiares e do apreço pelo caldeirão artístico do Cariri, o território foi palco do primeiro longa de Wolney, “Milagre em Juazeiro” (1999). Nos anos 1990, nas muitas idas, um carro deu o “prego” no caminho. “Levamos 24 horas pra chegar”, resgata.
Dos cinco filmes guiados por Wolney, três iluminam a região. “Filmei 11 romarias. Não digo que fiz um filme. Me tornei um devoto”, brinca. Em 2018, o “Português” (alcunha dada por Durvinha) voltou à trilha investigativa interrompida anos antes. O intervalo rendeu novos personagens e cenários. Explicar o fenômeno de Virgulino e Maria Bonita (1911-1938) passa pelo mergulho no artesanato, culinária, moda, literatura e obviamente o cinema. Nesse último, a obra “O Cangaceiro” (1953), de Lima Barreto (1906-82), tratou de unir dois continentes.
Após rodar cenas na Grota de Angicos, em Sergipe, durante missa pelos 80 anos da morte do Capitão, em 2018, Wolney foi a Paris colher o depoimento de dois críticos de cinema. Eles assistiram, na infância, ao clássico de Lima Barreto (1906-1982), vencedor do prêmio de “Melhor filme de aventura” e “Melhor trilha sonora” no Festival de Cannes.
Agora, entre o fim de outubro e novembro, o realizador lidera um grupo comprometido a percorrer estradas que atravessam o Ceará, Bahia, Alagoas e Pernambuco. As primeiras visitas contemplam Crato, Juazeiro do Norte e Barbalha. O time é formado por Alex Meira (assistente de câmera), Assis Ceará (eletricista), Dayane Oliveira (produtora), Evair Moura (motorista), Léo Oliveira (som direto), Raimundo Neto (motorista) e Rogério Rezende (diretor de fotografia).
Inicialmente, a reconstrução do passado exige o entendimento de vozes do presente. Nas rádios locais, Wolney convoca alunos de escolas públicas a escreverem textos que abordem o cangaço. Jovens de 12 a 17 anos podem participar do filme e serão agraciados com um cachê simbólico.
Som, câmera…
À tarde de quinta-feira (31) marcou o encontro com a arte de Lusyennir Lacerda e Demóstenes Fidélis. No bairro Santo Antônio, em Juazeiro, o casal desenvolve delicados tabuleiros de xadrez, nos quais são reproduzidos cenários e expressões populares. As temáticas Canudos, cangaço e reisado são recriadas em massa feita à base de fécula de mandioca. O colorido entrega poesia ao cenário de guerra entre volantes e cangaceiros.
A arte da dupla agora divide espaço com fios, lâmpadas, câmeras e toda uma parafernália quase alienígena. Aos poucos, o convívio no set improvisado vai deixando Demóstenes e Lusyennir à vontade. O tempo auxilia a abordagem pretendida. O casal confecciona as peças. O apelo da cena revela a silenciosa cumplicidade envolvida entre os dois artistas.
Chega o novembro
José Bonieck é historiador, artesão e sanfoneiro. A lida envolve o entalhe da imburana. Desde pequeno as cores do cangaço lhe despertavam interesse. Padre Cícero e Lampião foram as primeiras produções. Da manipulação da madeira, cria representações de figuras populares. Cita Mestre Noza (1897-1983) com profunda reverência e brilho nos olhos.
A assinatura Boni também demanda os esforços da companheira Débora Raquel. Se o jovem artista é hábil no processo de moldar peças simpáticas e repletas de cor, a parceira atua na área da divulgação e venda. Além do coração, dividem o afeto pela leitura e música. A oficina se mistura com a pequena casa. Ferramentas dividem espaço com fotografias e outras obras experimentais.
O espaço para os visitantes montarem o equipamento é ainda mais compacto e exige atenção das lentes comandadas por Rogério Rezende e Alex Meira. Por sua vez, Wolney é só alegria com a fala embasada e respeitosa de Boni. É quando o realizador interage com um sinal de positivo nas mãos. Ouvir é o segredo.
Dali o destino é o lar do pesquisador Margébio de Lucena. Cuidadoso nas respostas e firme nos dados apontados, o oftalmologista divide uma verdadeira aula com os presentes. Durante uma tarde inteira, resgata as muitas conversas feitas com ex-cangaceiros e o contato fiel com registros históricos.
Bandido ou herói, Lampião e seus asseclas deixaram marca indelével. A participação do estudioso contribui para as muitas perspectivas do tema a serem enfrentadas por Wolney. É momento de descansar. O Dia de Finados, no sábado, exigiria ainda mais da equipe.
A colina do Horto é tomada por romeiros de diferentes estados nordestinos. O volume de visitantes inspirou a produção a criar um totem com as imagens de Lampião e Maria Bonita. O traço do cartunista Klévisson Viana amplia o tom idílico da intervenção.A proposta é simples. Quem quiser pode chegar e tirar uma foto. A única exigência é fitar a câmera e falar do cangaço. Naturalmente os participantes se aproximam, e o bom humor invade a filmagem.
Ao meio-dia o destino é a Missa do Chapéu, no Centro. Cinema é uma rotina exaustiva, braçal e somente possível com ação em equipe. O respeito ao cronograma é fundamental para que o trabalho se desenvolva. A produtora Dayane Oliveira é total atenção ao entorno do set. Sempre atenta a qualquer ruído que atrapalhe a captação das imagens. Cuida da alimentação ao uso do protetor solar.
É perceptível a interação dos envolvidos. Quando uma boa conversa é registrada, todos desfilam um largo sorriso. Pouco importa as condições da locação. “Para trabalhar com cinema, deve fazer porque gosta”, observa o motorista Evair.
Nas poucas horas vagas, geralmente no intervalo entre as cidades e nas paradas de alimentação, os assuntos mais puxados envolvem o mercado de cinema. O assunto família é outra manifestação recorrente. Alguns trabalham juntos por mais de 20 anos.
Conhecem muitos palmos de chão cearense e os bastidores do criar cinema no Estado. A política Federal de censura e os cortes no setor cinematográfico preocupam. A proposta de redação do Enem, que fala de democratização do acesso ao cinema no Brasil, movimentou debates.
O domingo trouxe Barbalha e a arte de Wilton Santos. Areia, arame e papelão alicerçam as esculturas. É capaz de recriar episódios violentos, a exemplo da cena das cabeças cortadas de Lampião e seu bando. Em paralelo, é suave na composição de divindades e personagens folclóricos.
A última noite na companhia da equipe faz refletir a experiência. Impossível não questionar o ano de 2019. Período dado ao extermínio e descrença da cultura e ciência. Felizmente, no mesmo gomo temos outros sabores. Bem mais felizes.
Foi ano de “Pacarrete”. Allan, Marcélia e Gramado. Rosemberg e “Notícias do Fim do Mundo”. “Greta”, de Armando Praça. “Clube dos Canibais” assinado por Guto Parente. “Bate Coração”. “Soldados da Borracha”. “Marie” produzido por Arthur Leite. Cannes. Karim. “A Vida Invisível”. “Bacurau” com Fabíola Liper, Uirá dos Reis e o “Velho Menino” Rodger Rogério. Lembro de Fernanda Montenegro lendo a carta na abertura do Cine Ceará.
Quem enxergava aquela terra apenas pela recordação do monóculo, agora guarda outras leituras. Encarei beleza. Inocência. Contradições. Bondade. Empatia. Desejo por dias melhores. Testemunhos das muitas crenças. Injustiças, violência e resignação.
Vi trabalhadores dedicados ao ofício. O fazer cinema é sinônimo de sobrevivência para inúmeras famílias. Todos ganham quando um filme é produzido. O grupo seguirá as pegadas do cangaço por Nova Olinda (CE), Paulo Afonso (BA), Piranhas (AL), Bezerros (PE) e Recife (PE). Isso, se novas descobertas não mudarem os destinos da saga.
ENTREVISTA
Garimpeiro de histórias
Verso: Quais as suas motivações pessoais para contar a história de “Lampião, Governador do Sertão”?
Wolney Oliveira: Lampião sempre foi um assunto que me apaixonou. Meu pai, Eusélio Oliveira me influenciou no tema. Era um apaixonado pela história e o primeiro livro que li sobre cangaço foi presente dele. Escrito por Paulo Gil Soares, sobre cangaço, provavelmente tinha a ver com o filme “Memória do Cangaço” que é um clássico do Cinema Novo guiado por Soares. Quando li “Milagre em Joaseiro”, de Ralph Della Cava, um dos livros mais importantes sobre o Padre Cícero ao lado da obra de Lira Neto. Existem mais de 220 livros sobre Cícero e mais de 300 sobre Lampião.
O texto de Ralph Della Cava fala da passagem de Lampião em 1926 por Juazeiro e isso ficou na minha memória. É uma coisa que está impregnada na cultura do Sertão e do Nordeste. Eu tenho essa mania, defeito ou vantagem que eu prefiro que sobre do que falte material. Eu filmei 180 horas entre 2006 e praticamente 2011, ano da estreia de “Os Últimos Cangaceiros”. Entrevistei vários cangaceiros que não entraram no filme, volantes e ex-coiteiros. Por meio do tema, conheci muitos estados do Nordeste. Vários pontos belíssimos como Piranhas e o Raso da Catarina. Nosso País é muito grande e não conhecemos parte dele.
V: Como você explica a paixão pelo documentário?
W: Tive grandes influências. Eusélio Oliveira, meu pai e primeiro professor de cinema, era apaixonado pelo documentário. A outra grande motivação foi a escola de cinema de Cuba. Lá conheci grandes realizadores do gênero como Santiago Álvarez, Fernando Pérez, Gerardo Tirrona. Os dois últimos foram meus professores. Outra força é o meu querido mestre Eduardo Coutinho, que Deus ilumine e proteja. Vi praticamente tudo dele.
Em 1981, fui fazer um curso de cinema direto em Paris, fiquei três meses tendo aulas com discípulos de Jean Rouch. Entre as técnicas dele, envolve se aproximar do personagem, ficar amigo. Claro, nem sempre você pode fazer isso. É uma maneira de conseguir tirar o máximo de informação e sentimento dessas pessoas.
V: Seus trabalhos abordam vivências marginalizadas. Nesse sentido, qual é o compromisso do documentário?
W: Quem tem mais a ver com isso é o ‘Soldados da Borracha’. Até hoje é um tema desconhecido por muita gente. Eu mesmo só fui saber quando tinha 40 anos. Inclusive, o maior acervo dos soldados está no Mauc da UFC. É uma história de pessoas marginalizadas, esquecidas, soterradas e menosprezadas. São histórias que o Brasil não quer ver, contar e sentir. Isso é um motivo a mais para fazer cinema documentário.
No “Milagre em Juazeiro”, parto da beata que foi torturada e perseguida pela Igreja. Imagina um milagre acontecer na boca de uma negra ‘pobre’, ‘feia’, ‘analfabeta’, segundo os depoimentos de padres da época; e no interior do Ceará? Juazeiro do Norte? Se fosse em Paris a Igreja teria acatado. Como foi aqui não aceitou e até hoje não oficializou ainda. Não beatificou Padre Cícero.
V: O Cine Ceará chega a 30 edições em 2020 e o que você projeta para o próximo ano?
W: Superar a 29ª edição é a mesma tarefa de tentar ir além de “Os Últimos Cangaceiros”. É um dos meus filmes prediletos. É o mais maduro. Já estamos trabalhando no festival. Vamos lançar um livro sobre os 30 anos do Cine Ceará. Vamos fazer em setembro de 2020. Ninguém sabe como vai estar a situação política e econômica do País. Posso dizer que das 29 edições das quais produzi e dirigi, 27 não teve nenhuma fácil. 2019 foi a mais difícil, mas também a de maior sucesso em relação a todas as outras. A 30ª edição também é um desafio.
V: Já pensou na aposentadoria ou é algo que não passa por sua cabeça? Quais trabalhos você imagina se dedicar nos próximos anos?
W: Nunca pensei em me aposentar. Óbvio, penso em relação à Casa Amarela é à Universidade. Parar enquanto cineasta, não. Meu espelho e objetivo é Luiz Carlos Barreto, um dos grandes nomes do cinema brasileiro e nordestino. Barretão é de Sobral e no auge dos seus 91 aninhos estava numa audiência pública no Supremo. Enquanto eu tiver forças, vou continuar filmando. A projeção é que em quatro anos, eu me aposente da UFC e da Casa. Daí vou fazer meus filmes que é o maior prazer da minha sina cinematográfica.
Além do “Lampião, o Governador do Sertão”, estamos finalizando “Vozão, Coração do meu Povão”, sobre o time do Ceará. Dirijo com o Joe Pimentel e deve sair em 2020. Estou filmando “Memórias da Chuva”, longa documentário sobre Jaguaribara, que foi coberta pela água do Castanhão, maior açude da América Latina. Tem a cidade de Guassussê que foi coberta pelas águas do Orós. Outro filme sobre futebol é “Clássico Rei”, que além do Joe inclui o Valdo Siqueira. Vai contar os 100 anos do confronto entre os rivais.
V: Se não fosse o cinema, o que existiria para você?
W: Quando eu tinha por volta de 20 anos, minha avó, por parte de mãe, colocou na minha cabeça que eu tinha que ser bancário. Até embarquei na onda dela, mas vi que não tinha nada a ver. Minha paixão era cinema. Nessa época eu era fotógrafo de still. Comecei fotografando casamento, batizado, aniversário e depois mais na área do fotojornalismo e vídeo. Não me imagino em nenhuma outra ocupação que não seja o cinema. Acho que minha vida não seria essa aventura que é fazer cinema.
Por *Antonio Laudenir
*O repórter viajou a convite da produção do filme “Lampião, o Governador do Sertão”
Fonte: Diário do Nordeste