A catadora de latinhas Valquíria Cândido da Silva, 47, mora em uma casa pequena no Grajaú, zona sul de São Paulo, com o marido e quatro filhos. Com renda familiar de R$ 2.000, ela teve de deixar de pagar a conta de luz para fazer a compra de alimentos do mês.
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A fatura de energia, que antes da pandemia não passava de R$ 60, bateu R$ 370 neste mês. A de água saltou de R$ 30 para R$ 200 no mesmo período.
“Não tive escolha. A conta não para de subir e está tão alta que tive de adiar o pagamento para poder ter o que comer em casa”, afirmou Valquíria.
“Não paguei a água e cortei outros gastos também, como roupa e lazer. Trabalho para as contas. Os meninos estão na escola, temos gastos com eles, e, por isso, estou economizando em quase tudo”, disse.
Nos planos está a construção de um fogão a lenha para evitar pagar mais de R$ 100 por um botijão de gás. Também entrou no radar a captação de água de chuvas para lavar roupas e tomar banhos de bacia.
Não tive escolha. A conta [de luz] não para de subir e está tão alta que tive de adiar o pagamento para poder ter o que comer em casa
Valquíria faz parte do grupo de 22% dos brasileiros que, diante da alta explosiva das tarifas de energia e água, estão trocando o pagamento da conta de luz pela compra de alimentos básicos, como arroz e feijão.
É o que mostra pesquisa feita pelo Ipec para o iCS (Instituto Clima e Sociedade). Entre 11 e 17 de novembro de 2021, o instituto entrevistou 2.002 pessoas com 16 anos ou mais em todas as regiões do país.
O levantamento mostrou que o aumento da energia comprometeu, em média, metade do orçamento de um quarto dos brasileiros de baixa renda (até cinco salários mínimos —hoje, R$ 6.060).
A energia corroeu ao menos 25% dos vencimentos de metade da população brasileira.
No geral, quatro entre dez brasileiros reduziram despesas deixando de comprar roupas, sapatos e eletrodomésticos para arcar com a luz. A população de baixa renda é a que mais contribuiu com esse resultado.
Os cortes de despesas foram mais severos no Nordeste e no Centro-Oeste, onde um em cada quatro habitantes (28% e 27%, respectivamente) postergou o pagamento para ir ao supermercado.
Em Brasília, Ivânia Souza Santos, 38, ainda não sabe como conseguirá pagar a conta de luz. Desempregada, ela, o marido e três filhos pequenos moravam em uma ocupação próxima ao Palácio do Planalto, mas foram expulsos com outras famílias.
Com o auxílio mensal de R$ 600 pago pelo governo do Distrito Federal, ela alugou um apartamento pequeno —quarto e sala— de um prédio em Itapuã, bairro afastado da capital federal.
No edifício, três unidades compartilham um mesmo medidor de luz e dividem as despesas. “Em outubro, o governo parou de pagar e, agora, não tenho como quitar essa conta”, disse Ivânia.
Ela conta ter pedido um empréstimo a uma amiga para saldar o aluguel. “Com o que sobrou eu comprei mantimentos. A conta de luz está atrasada.”
O fornecimento só não foi interrompido porque os demais apartamentos realizaram o pagamento e Ivânia ficou como devedora dos moradores.
A tarifa de energia subiu demais porque a falta de chuva, que fez o ano de 2021 entrar para a história como o mais seco dos últimos 91 anos, reduziu o volume de água nas hidrelétricas.
Por isso, desde o início do ano passado, o governo autorizou com mais regularidade a contratação de energia produzida por termelétricas movidas a diesel, carvão e outros combustíveis fósseis que cobraram mais de R$ 2.000 o MWh (megawatt-hora), quase dez vezes o preço de referência.
O governo também permitiu a importação de energia da Argentina e do Uruguai por preços similares.
O resultado dessa política para o consumidor foi uma alta na tarifa duas vezes acima da inflação medida pelo IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), de acordo com o iCS.
Os cálculos, segundo o físico Roberto Kishinami, coordenador sênior de energia do instituto, não levaram em conta as bandeiras tarifárias e as medidas para contornar a crise hídrica que, em ano eleitoral, serão deixadas como herança para o próximo governo.
Em valores médios, a luz (tarifa mais impostos) subiu 1,32 vez mais que o IPCA durante os oito anos do governo Lula; 1,1 vez ao longo da gestão da ex-presidente Dilma Rousseff; 2,4 vezes sob Michel Temer e duas vezes no governo Bolsonaro.
Bolsonaro deixará um passivo superior a R$ 140 bilhões a ser repassado para os consumidores em 2023 —o que ficará sob a gestão de um segundo mandato ou de um eventual novo governo.
Para os especialistas, o peso dessa política será maior para as famílias mais pobres. “Para os mais ricos, a conta, mesmo subindo mais do que a inflação, não compromete a renda familiar”, disse Kishinami.
Em debate recente promovido pelo iCS, a economista Paula Bezerra, doutora em planejamento energético pela Coppe-UFRJ, afirmou que os 10% dos brasileiros mais ricos consomem 2,5 vezes mais energia que os 10% mais pobres.
Entretanto, para os mais abastados, a conta representa 2% do orçamento familiar. Entre os menos favorecidos, pode comprometer até metade da renda.
Essa desproporção deve ainda piorar diante da aprovação da lei que abriu o mercado para a geração distribuída, mecanismo que permite a instalação de placas solares ou unidades geradoras em cada domicílio com a previsão de abatimento na conta caso o gasto seja inferior à produção de cada domicílio.
Como esses equipamentos exigem investimentos, será uma solução para que os consumidores de renda mais alta gerem sua própria energia, escapando dos custos da rede elétrica das distribuidoras. Ou seja: com menos consumidores de maior poder aquisitivo rateando os custos do sistema elétrico nacional haverá uma sobrecarga ainda maior sobre os mais pobres.
A saída para evitar a indigência energética, segundo diversos especialistas do setor, é a criação de um programa de tarifa progressiva. “Esse é um fator de injustiça que precisa ser corrigido”, disse Kishinami.
A exemplo da proposta do Ministério da Economia, que pretende criar um Imposto de Renda que aumenta conforme a renda, esses técnicos defendem tarifas diferenciadas balizadas pelo ganho mensal das famílias. Existem propostas do gênero no Congresso, mas seguem paradas há duas décadas.
A tarifa social foi um feito nesse sentido, mas já não se mostra suficiente. “Ela trava o consumo em 30 kWh (quilowatt-hora) por mês”, disse Paula Bezerra.
“Essa taxa só comporta luz e um refrigerador eficiente. Como na maioria desses lares a geladeira não funciona direito, [boa parte da baixa renda] não cai nessa faixa”, afirmou.
Uma reforma do setor elétrico para corrigir essas distorções é uma necessidade urgente, diz o ex-diretor do ONS (Operador Nacional do Sistema) Luiz Barata, já que as dificuldades do consumidor de baixa renda são imediatas e não justificam planos que só olhem para o longo prazo.
O MME (Ministério de Minas e Energia) afirmou que a discussão sobre um novo modelo de tarifas está no projeto que trata da modernização do sistema elétrico e que os mais pobres não participaram do rateio do aumento de custos de geração.
Por meio de sua assessoria, a pasta disse que a, partir deste ano, a tarifa social será concedida automaticamente.
“Não será mais necessário solicitar à distribuidora”, disse o ministério. “Atualmente, cerca de 12,3 milhões de famílias no Brasil recebem a tarifa social. Estimativas apontam que existam mais 11,5 milhões de famílias em condições de usufruir dos descontos.”
Fonte: Folhapress